Um dos capítulos mais tristes da nossa história também foi uma tragédia na cobertura midiática. Com suas vozes silenciadas, os mais atingidos, povos e comunidades tradicionais agora vivem os impactos acumulados com a pandemia do coronavírus 

Neste 5 de junho, data em que se celebra o Dia Mundial do Meio Ambiente, o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social lança a publicação “Vozes Silenciadas: a cobertura do vazamento de petróleo no litoral”, que analisa a abordagem dos principais veículos de comunicação no Brasil sobre o maior desastre por derramamento de petróleo cru do Oceano Atlântico Sul. Dados levantados pelo Intervozes mostram que, além do atraso de quase um mês na divulgação dos fatos pela mídia, seja nos veículos de alcance nacional ou nos de alcance regional, em média 60% das vozes ouvidas foram de autoridades públicas e apenas 5% aproximadamente representavam os povos e comunidades tradicionais diretamente afetados.

Dez meses depois do aparecimento das primeiras manchas do petróleo, o governo federal segue sem respostas sobre a possível origem do material. O último balanço feito pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de 20 de março deste ano, revela que 1.009 localidades, de 11 estados e 130 municípios brasileiros, foram afetadas. 

A pesquisa investigou a cobertura de sete veículos de comunicação impressa, três jornais televisivos e uma mídia pública, são eles: O Globo (RJ), Folha de S. Paulo (SP), O Estado de S. Paulo (SP), A Tarde (BA), Jornal do Commercio (PE), O Estado do Maranhão (MA), Diário do Nordeste (CE), Jornal Nacional, SBT Brasil, Jornal da Record e Agência Brasil. A análise qualitativa se ateve aos materiais jornalísticos não opinativos. Desses, 241 estavam nos veículos impressos, 57 nos telejornais e 52 no webjornalismo da Agência Brasil, totalizando 350 conteúdos analisados.

Pescadoras e Marisqueiras são silenciadas

A gravidade, a duração e a extensão dos impactos ainda são imensuráveis pela ciência, mas já se evidenciam efeitos de enorme severidade sobre a vida de pescadoras, pescadores, marisqueiras, catadoras de mangaba, quilombolas, ribeirinhos/as, agricultores/as e outras pessoas que têm a reprodução da vida em simbiose com os mares, rios, mangues e territórios tradicionais pesqueiros. Tais populações denunciam agora os impactos acumulados com a pandemia do coronavírus.

Entre os aspectos mais relevantes da pesquisa está justamente a invisibilidade conferida a pescadores/as e marisqueiras/os. Verifica-se, por exemplo, que a referência ou nomeação de “pescadores/as” e “marisqueiras” é quase apagada dos títulos dos jornais impressos estudados. Dos 16 títulos de O Globo, não há sequer uma menção às palavras “pescadores”, “pescadoras”, “marisqueiros” ou “marisqueiras”. Já na Folha de S. Paulo, dos 55 títulos listados, os termos aparecem em apenas três. O Estado de S. Paulo abordou o vazamento do petróleo em 31 títulos, mas somente em um referenciou as categorias dos trabalhadores/as atingidos/as. 

Os veículos regionais pesquisados, que, em tese, estavam mais próximos da realidade vivenciada por pescadores/as e marisqueiras/os, não se comportaram de forma diferente. No jornal Diário do Nordeste, do Ceará, entre os seus 18 títulos, nenhum referenciou diretamente as categorias que sobrevivem das atividades pesqueiras. Dos 46 títulos do Jornal do Commercio (PE), também há apagamento total delas, mesmo quando são referenciadas indiretamente. O periódico regional que mais utilizou as palavras “pescadores” ou “marisqueiras” foi o jornal A Tarde, que, nos seus 54 títulos, fez cinco citações diretas.

Esse quase apagamento das palavras “pescadores/as” e “marisqueiras” nos títulos das matérias (algumas com chamadas de capa) revelam muito mais do que uma opção ou escolha de vocabulário. 

A imprensa se pautou por uma lógica conservacionista de suposta preocupação com o ambiente como se as pessoas não fossem parte dele. De forma perversa, invisibilizou os sujeitos e sujeitas que dependem dos territórios impactados. A invisibilidade imposta às pescadoras e pescadores é o ponto central da questão, digo ponto central, visto que para o capital se afirmar é preciso negar o modo de vida tradicional, as mulheres e homens das águas que historicamente teve sua humanidade negada, seu modo de vida desqualificado e seguem sendo usurpados até do direito de falar”, afirma Elionice Sacramento, liderança quilombola, integrante do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e da Articulação Nacional de Pescadoras (ANP) e uma das colaboradoras da pesquisa. 

Outro ponto central do levantamento, diz respeito a tendência ao jornalismo declaratório. Há pouca referência a legislações e tratados na área ambiental que o Brasil é signatário. “O que se vê são matérias e reportagens, tanto no jornalismo da TV quanto nos impressos, que se pautam por declarações do governo. Foi o caso da acusação de Bolsonaro de que o petróleo seria de origem venezuelana. Isso foi destaque no Jornal da Record. Da mesma forma, reproduziu-se as acusações ao Greenpeace e ao navio grego, sem aprofundamento e com pouco ou nenhum contraponto”, explica Paulo Victor Melo, integrante do Intervozes e um dos autores da pesquisa. 

Para Iara Moura, coordenadora executiva do Intervozes e uma das autoras da pesquisa, o jornalismo deixou de cumprir com o interesse público ao silenciar os mais atingidos e dar por encerrado o episódio antes mesmo de apurar responsáveis e acompanhar os danos de médio e longo prazo. “Há uma impressão de que o jornalismo sumiu no rastro do petróleo. Depois que pararam de aparecer novas manchas, é como se a história tivesse chegado ao fim. E não é isso que as populações atingidas têm denunciado”, completa.

A liderança indígena Sônia Guajajara e a jornalista do Marco Zero Conteúdo, Débora Britto, também colaboraram com a publicação.

Lançamento
Para apresentar e discutir os dados da pesquisa, será realizada uma transmissão ao vivo pelo canal do Intervozes no YouTube e pela página no Facebook no dia 5 de junho, às 19h30.

A conversa contará com a participação de Elionice Sacramento; Raíssa Ebrahim, repórter do Marco Zero Conteúdo; Sonia Aguiar, professora de Comunicação da Universidade Federal de Sergipe; e Paulo Victor Melo. A mediação será de Iara Moura.

A publicação, realizada em parceria com a Ford Foundation e apoio da Fundação Heinrich Böll, ficará disponível para download gratuito no site do Intervozes.

Foto da capa: SECOM/Sergipe