AO EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR REGIONAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO EM SÃO PAULO – DR PEDRO ANTÔNIO DE OLIVEIRA MACHADO

 

INTERVOZES – COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, associação civil sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ/MF sob o número 06.040.910/0001-84, com sede à Rua Rego Freitas, nº 454 – conjunto 92 – CEP: 01220-010 – República, Município de São Paulo, Estado de São Paulo (doravante, “Intervozes”), por meio de sua representante legal Ana Claudia Silva Mielke, brasileira, solteira, jornalista, portadora da cédula de identidade RG n. 1.664.805 SSP/ES, inscrita no Cadastro de Pessoas Físicas/MF sob o n. 085.171.727-60, vem respeitosamente, perante Vossa Excelência, apresentar, nos termos do art. 5º, XXIV, “a”, da Constituição Federal, e art. 12 da Lei Complementar n.º 73/1993, fatos que ensejam a atuação da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão.

Na edição 2.430 da revista VEJA, datada de 17 de junho de 2015, a publicação da Editora Abril, que afirma ter imprimido 1.100.983 exemplares, trouxe como matéria principal o “Especial Maioridade Penal”. Logo na capa, a revista apresenta fotos embaçadas de quatro adolescentes suspeitos de terem participado de estupro e tentativa de homicídio em Castelo do Piauí, no interior do Estado e as iniciais dos nomes de todos eles, seguida das frases: “Eles estupraram, torturaram, desfiguraram e mataram. Vão ficar impunes?”.

No interior da publicação, as fotos e as iniciais dos nomes dos adolescentes, também são apresentadas, facilitando a identificação dos mesmos. O título sugere impunidade: “Justiça só para maiores”. A chamada da matéria antecipa o julgamento e a condenação: “Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?” (VEJA, edição 2.430, p. 41).

Em seguida, lê-se que “Detidos na madrugada, os quatro jovens – velhos conhecidos da polícia pelo histórico de invasão de casas, assalto a mercearias e roubo de motos – confessaram o crime. Adão Souza, o adulto do grupo, também foi preso. Se condenado (foi indiciado por homicídio, tentativa de homicídio e estupro), deverá ficar até trinta anos na cadeia. Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e de onde sairão como réus primários” (VEJA, edição 2.430, p. 42). Ao falar do adulto, os jornalistas responsáveis pela matéria deixam clara a necessidade de haver uma condenação posterior. A frase sobre os adolescentes, em ordem direta, apresenta a condenação como dada: “serão encaminhados”.

Em um box na segunda página da matéria, novamente destaca-se que “Os quatro adolescentes, com idade entre 15 e 17 anos, eram conhecidos em Castelo do Piauí por invadir casas, assaltar mercearias e roubar motos. No último dia 27, na companhia de um adulto, atacaram e estupraram quatro jovens que tiravam fotografias em um local nas proximidades da cidade. Uma das vítimas do grupo, Danielly Feitosa, de 17 anos, morreu. Outra está internada em estado grave”.

Diante da situação descrita acima, o Intervozes vem, então, denunciar à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo as ilegalidades cometidas pela revista VEJA frente às normas atualmente em vigor que integram o ordenamento jurídico de nosso país.

Até aqui, vê-se que a revista violou direitos em pelo menos dois aspectos. Primeiro, apesar da distorção nas fotos e do uso de iniciais, há clara identificação dos adolescentes que podem estar em conflito com a lei, o que é vedado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo o parágrafo único do artigo 143 da norma, “Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criançaou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência”. Já o parágrafo primeiro do Artigo 247 aponta que será punido quem exibir “total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente” (grifo nosso). O parágrafo subsequente destaca que “Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação”.

Também a Convenção para os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990 e promulgada por meio do Decreto 99.710/1990, estabelece, em seu 16º Artigo, a proteção da privacidade. “As crianças têm direito a proteção contra a intromissão em sua privacidade, família, lar e correspondência, bem como contra a difamação e calúnia”, conforme o texto.

Há ainda jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema, como a que tratou de notícia em jornal envolvendo adolescentes como agentes de condutas ilícitas. Conforme decisão em Recurso Especial: “Autorização do juiz da infância e da juventude – Inexistência – Sanção administrativa – lei 8.069/90, art. 247 – precedentes STJ. ‘A criança e o adolescente têm direito ao resguardo da imagem e intimidade. Vedado, por isso, aos órgãos de comunicação social narrar fatos, denominados infracionais, de modo a identificá-los’ (REsp. 55.168/RJ, DJ de 9.10.1995)”.

Outros entendimentos semelhantes corroboram com a preocupação que motiva esta representação: “A publicação da fotografia, além de ofender a honra infanto-juvenil, excita a personalidade defeituosamente formada, servindo, não raro, a estímulo à própria criminalidade de quem a veja, sobre representar, pelo motivo exposto, um quase convite à conduta infracional, pois o leitor desavisado terá a falsa impressão de que a publicação implica a valoração pública do infrator (TJSP, Ap. Cível 24.140 São Paulo relator Des. Ney Almada)”, conforme consta em decisão do Ministério Público do Estado do Paraná referente à ação que envolveu o Jornal do Estado [Disponível em: http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_7_4_1_1_1.php] .

Segundo, há, nas reportagens, o julgamento antecipado. Os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no Piauí são tratados não como suspeitos, mas como culpados, conforme apontam os trechos citados anteriormente. Vale ressaltar que a Constituição Federal estabelece, no Artigo 5°, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) estabelece, ao tratar, em seu Artigo 5, do Direito à Integridade Pessoal, que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Ignorando tais normas e princípios do nosso ordenamento jurídico, a matéria de VEJA julga e condena, ela própria, os adolescentes.

Cabe destacar que a publicação das matérias se dá no momento em que o Congresso Nacional discute propostas de alteração da maioridade penal, especialmente a proposta de emenda constitucional (PEC) 171/93, aprovada na Comissão de Constituição de Justiça da Câmara em abril, cujo relatório da Comissão Especial criada para analisar a medida possivelmente será votado nesta semana. Nesse contexto, a revista trata a norma vigente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como “um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores” (VEJA, edição 2.430, p. 42). A mudança no ECA é apontada como “única esperança de que se chegue a uma abordagem efetiva dessa tragédia. Enquanto isso, as Daniellys continuarão a ser estupradas, mortas a pedradas, jogadas de precipícios, sob o olhar leniente da Justiça” (VEJA, edição 2.430, p. 46).

Jornalistas da revista responsáveis por comentar a capa da edição no portal da VEJA na Internet destacam a relação entre a capa, o caso do estupro e o debate sobre a redução da maioridade penal. O jornalista Augusto Nunes destacou que “A impunidade dos jovens assassinos, assaltantes, estupradores, autores de crimes gravíssimos… A impunidade é fruto da lei, da legislação que nós temos. E acho que a VEJA escolheu um bom caminho ao ilustrar a reportagem com casos exemplares, no pior sentido, que ocorreram”.

Do ponto de vista jornalístico, chama a atenção a ausência de qualquer fonte contrária à redução da maioridade penal, o que contraria o Código de Ética dos Jornalistas, que aponta que, “ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística, principalmente aquelas que são objeto de acusações não suficientemente demonstradas ou verificadas”. Também o Código de Ética e Autorregulamentação da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) diz ser necessário “Garantir a publicação de contestações objetivas das pessoas ou organizações acusadas, em suas páginas, de atos ilícitos ou comportamentos condenáveis”.

Destaque-se que a Constituição Federal, em seu artigo 220, caput e § 2º, garante plenamente a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. Da mesma forma, diversos dispositivos internacionais asseguram esse direito, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e a Convenção Americana. No entanto, a liberdade de expressão não é absoluta, devendo estar em compasso com outros direitos inseridos nesses mesmos dispositivos e na Constituição Federal, como direito à privacidade, à imagem e à intimidade dos indivíduos (art. 220, § 1º e art. 5º, X), bem como os valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221, IV).

A Convenção Americana de Direitos Humanos, por exemplo, garante, em seu artigo 13, que não haverá censura prévia (com exceção daquela com o objetivo de proteção moral de crianças e adolescentes no acesso a espetáculos públicos), mas impõe a responsabilização posterior do autor nos casos de abusos no exercício da liberdade de expressão. Significa dizer, em síntese, que a liberdade de expressão deverá ser protegida sempre, mas, em algumas hipóteses previamente determinadas nas legislações, o abuso em seu exercício, que cause uma violação a um outro direito humano, poderá ser sancionado.

Destaque-se que a Constituição Federal estabelece prioridade absoluta às crianças e adolescentes. Conforme o seu artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 

E é exatamente da denúncia de um abuso no exercício da liberdade de expressão que o Intervozes trata nesta representação. Verifica-se, pelo acima exposto, que o conteúdo veiculado pela VEJA viola direitos fundamentais e, portanto, está em desacordo com dispositivos legais adotados no Brasil, além dos padrões internacionais que buscam assegurar a efetivação de tais direitos.

Dessa forma, a eventual responsabilização da publicação da Editora Abril decorrerá de uma ação legítima, dentro dos parâmetros que regram o exercício dessa liberdade.

Requer-se, assim, à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, que sejam tomadas as providências legais pertinentes à responsabilização da Editora Abril, responsável pela publicação da revista VEJA, sob pena de direitos fundamentais como os já violados na matéria em questão – e que são prática recorrente na imprensa brasileira – serem cada vez mais naturalizados.


Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 16 de junho de 2015.

INTERVOZES – COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL