Um projeto de lei sobre desinformação será votado na próxima quinta-feira (25), no Brasil. A proposta foi apresentada em abril, em plena pandemia do Covid-19, e passou por diversas modificações. O texto final que será analisado pelo Congresso é, no entanto, ainda incerto. A falta de transparência é um agravante a mais de um processo marcado por restrições à participação das múltiplas partes interessadas e por propostas legislativas mal formuladas, que podem implicar em sérios riscos à liberdade de expressão e à privacidade.

Versões anteriores do texto e posições públicas de legisladores sobre o tema mostram abusos na criminalização de práticas comuns, definições vagas e amplas, e requisitos de identificação que ameaçam a privacidade e a liberdade de expressão e geram novas formas de discriminação. Em sua versão mais recente – que deve ser apresentada formalmente ao Congresso – o projeto de lei cria uma Internet altamente controlada e coloca os usuários sob suspeita de desenvolver atividades consideradas ilícitas. Além disso, a obrigação da identificação por meio de documentos de identidade e número individualizado de telefone celular pode excluir milhões de pessoas do acesso à informação e a serviços online básicos. Tal situação é particularmente danosa em um momento em que tal acesso se torna crucial para a participação na vida política e para o exercício de direitos sociais, econômicos e culturais.

O projeto de lei também amplia as obrigações preexistentes de retenção de dados para permitir o monitoramento do informação compartilhadas em aplicativos de mensagens privadas. A medida não apenas contraria os padrões internacionais de direitos humanos a respeito da privacidade como coloca as comunicações e a vida de defensoras e defensores de direitos humanos, jornalistas e ativistas em risco constante. Outras preocupações a respeito da última versão do projeto incluem a possibilidade de bloqueio das atividades de empresas de Internet no país caso não cumpram a obrigação de manter bases de dados com informação de usuárias e usuários brasileiros dentro do território nacional; o reforço de obrigações de registro de localização; e o aumento de penas criminais para calúnia, injúria e difamação (incompatível com os padrões internacionais de direitos humanos), como foi destacado por uma ampla coalizão de organizações brasileiras.

A última versão do texto não é capaz de cumprir com o suposto objetivo de combater a desinformação, ao estimular a concentração no âmbito digital – por meio de imposição de obrigações desproporcionais às empresas provedoras de serviços de Internet – e a autocensura, por meio da excessiva vigilância e da ampla criminalização de discursos. Ao fazê-lo, o projeto contraria diretamente o que foi assinalado por especialistas internacionais de direitos humanos sobre o tema, que recordam que “os Estados têm a obrigação positiva de promover um entorno comunicativo livre, independente e diverso, incluindo a diversidade dos meios, que constitui um modo fundamental para lidar com a desinformação e a propaganda”, e que “as proibições gerais de difusão de informação baseadas em conceitos imprecisos e ambíguos, incluídos os de ‘notícias falsas’ (‘fake news’) ou ‘informação não objetiva’, são incompatíveis com os padrões internacionais sobre as restrições à liberdade de expressão, conforme indicado no parágrafo 1(a), e deveriam ser abolidas”.

Se aprovado, este projeto de lei abrirá um precedente preocupante para outros países que atualmente discutem regulações para restringir a desinformação. Trata-se de um debate complexo, que não pode ser acelerado por mecanismos de tramitação de urgência ou pela desconsideração de seus impactos significativos nos direitos humanos e nas garantias processuais.

A desinformação pode ter impactos negativos para a democracia, a liberdade de expressão, o jornalismo e o espaço público, bem como quaisquer tentativas inapropriadas de regulá-la. Os Estados devem abster-se de adotar marcos normativos que não estejam embasados em evidência e que não sejam resultado de um debate público amplo, com participação dos diferentes setores da sociedade. Como destacaram os especialistas internacionais de direitos humanos em suas recomendações sobre como responder ao fenômeno da desinformação, “os Estados somente poderão estabelecer restrições ao direito fundamental à liberdade de expressão em conformidade com o teste previsto no direito internacional para tais restrições, a saber, que estejam estipuladas em lei, alcancem um dos interesses legítimos reconhecidos no direito internacional e resultem necessárias e proporcionais para proteger esses interesses”.

Uma ampla discussão envolvendo as múltiplas partes interessadas e a adoção de regras para garantir mais transparência e prestação de contas por parte das empresas de Internet, assim como mecanismos para o devido processo na moderação de conteúdos, são mais do que bem-vindos. Tal discussão deve considerar os padrões de direitos humanos que já reconhecem o controle concentrado das comunicações digitais como uma ameaça à liberdade de expressão. No entanto, o texto em discussão falha em atender tais princípios e não deveria ser aprovado sem o devido debate público.

Pelas razões expressas acima, as organizações abaixo assinadas solicitam aos legisladores brasileiros que rejeitem imediatamente a última versão do texto, adiem a votação da chamada “Lei das Fake News” (PL 2630/2020), removam sua tramitação em regime de urgência e convoquem um amplo diálogo com as múltiplas partes interessadas para discutir como responder aos desafios da desinformação online de acordo com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro em respeito aos tratados internacionais de direitos humanos e aos padrões existentes sobre o tema.

Assinam:

  1. Access Now, Global
  2. Amnesty International Brazil
  3. ARTICLE 19, Global
  4. Asociación Mundial de Radios Comunitarias (AMARC), Latin America and the Caribbean
  5. Asociación Nacional de la Prensa (ANP), Bolivia
  6. Asociación por los Derechos Civiles (ADC), Argentina
  7. Asociación TEDIC, Paraguay
  8. Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), Brazil
  9. Association for Progressive Communications (APC), Global
  10. Autres Brésils, France
  11. Center for Democracy & Technology, US/EU
  12. Centro de Archivos y Acceso a la Información Pública (CAinfo), Uruguay
  13. Centro Nacional de Comunicacion Social AC, Mexico 
  14. Damian Loreti, Argentina
  15. Derechos Digitales, Latin America
  16. Digital Empowerment Foundation, India
  17. Electronic Frontier Foundation (EFF), Global
  18. Espacio Público, Venezuela
  19. Fundación Escuela Latinoamericana de Redes (EsLaRed), Venezuela
  20. Fundación Karisma, Colombia
  21. Fundación para la Libertad de Prensa (FLIP), Colombia
  22. Fundamedios, Latin America
  23. Human Rights Watch, Global
  24. Index on Censorship, Global
  25. Instituto de Prensa y Libertad de Expresión (IPLEX), Costa Rica
  26. Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), Brasil
  27. Instituto Prensa y Sociedad, Peru
  28. Instituto Prensa y Sociedad, Venezuela
  29. Internet Without Borders, Global
  30. IPANDETEC, Central America 
  31. ISOC Brazil (Brazil Chapter of Internet Society) 
  32. Hiperderecho, Peru
  33. Martín Becerra, Argentina
  34. OBSERVACOM, Latin America
  35. Observatorio Latinoamericano para la Libertad de Expresión (OLA), Latin America 
  36. Open Knowledge Brasil
  37. Paradigm Initiative (PIN), Africa
  38. R3D: Red en Defensa de los Derechos Digitales, Mexico
  39. Reporters Without Borders (RSF), Global
  40. Software Freedom Law Centre (SFLC.in), India 
  41. Sulá Batsú, Costa Rica
  42. Sursiendo, Comunicación y Cultura Digital, Mexico
  43. Usuarios Digitales, Ecuador
  44. IFEX-ALC
  45. Ciberfeministas GT, Guatemala
  46. Chaos Computer Club, Alemanha;
  47. Tor Project, Global
  48. Freedom of Privacy Forum
  49. Digitale Gesellschaft, Alemanha
  50. Future of Privacy Forum
  51. Freedom House, Estados Unidos
  52. Creative Commons, Uruguai