Iniciativa do Intervozes em parceria com entidades representativas de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) foi lançada nessa sexta-feira (24)

“As mulheres daqui muitas não tão doente de coronavírus, tão doente de tristeza porque não podem trabalhar, porque mesmo se for pra maré e catar algo não tem onde vender”. A voz forte da pescadora Joana Moussinho chega a embargar quando fala da vida dela e de suas companheira de maré e da Articulação Nacional de Pescadoras (ANP). Para Joana, suas vizinhas e parentes de Itapissuma, litoral pernambucano, o ‘novo normal’ imposto pela pandemia chegou antes em forma de prenúncio, quando o mar se pintou de preto, em fins de 2019.

Quase um ano se passou desde que o maior desastre com petróleo do Atlântico Sul aconteceu no Brasil vitimando mares, mangues, rios e estuários de 11 estados e 130 municípios, com danos irreversíveis a localidades invisíveis aos mapas e jornais, muitas destas no nordeste do país. Pescadoras, pescadores, marisqueiras, quilombolas, catadoras de mangaba, indígenas, agricultores/as e outros Povos e Comunidades Tradicionais diretamente atingidos pelo vazamento de petróleo denunciam a falta de respostas do Estado. A interrupção do trabalho é agora agravada pela interiorização do novo coronavírus ameaçando a subsistência e os modos de vida tradicionais.

Hoje, 11 meses após o aparecimento das primeiras manchas no litoral, a imprensa e o Estado brasileiro parecem considerá-lo episódio superado. Buscando quebrar o silêncio, nessa sexta-feira, 24, foi lançado o projeto Ondas da Resistência, que reúne esforços coletivos para para contar histórias e dar voz a pescadoras, pescadores, marisqueiras e outros PCTs que vêm enfrentando os impactos do vazamento de petróleo agravados pela crise sanitária da Covid-19.

Iniciativas

Um dos principais instrumentos do projeto é o site ondasdaresistencia.org, que reunirá dados e informações da Pesquisa Vozes Silenciadas – a cobertura da mídia sobre o derramamento de petróleo na costa brasileira,  e artigos sobre comunicação, justiça socioambiental e direitos de povos e comunidades tradicionais.

Outra iniciativa, que leva o mesmo nome do projeto, é o podcast, apresentado por Tâmara Terso, mulher negra, jornalista, integrante do Intervozes, e Maryellen Crisóstomo, mulher negra, jornalista e  integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Com seis episódios previstos, o podcast abordará a situação de territórios atingidos pelo vazamento de petróleo e pela pandemia do novo coronavírus e estará disponível no site do projeto e nas plataformas Deezer, Spotify e Google Podcasts.

Com financiamento da Fundação Heinrich Boll, o projeto Ondas da Resistência é coordenado pela Intervozes e desenvolvido em parceria com diversas entidades, como Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), Articulação Nacional de Pescadoras (ANP), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE), Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Carrapicho Virtual, Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil) e Escola das Águas.

Pesquisa Vozes Silenciadas

De acordo com a pesquisa Vozes Silenciadas – a cobertura da mídia sobre o derramamento de petróleo na costa brasileira, lançada no dia 5 de junho deste ano, em média 60% das fontes ouvidas pela imprensa nacional em reportagens e matérias sobre o vazamento do petróleo foram autoridades públicas e apenas 5% foram oriundas de moradoras e moradores de territórios tradicionais pesqueiros e outras comunidades.

O estudo  investigou a cobertura de sete veículos de comunicação impressa, três jornais televisivos e uma mídia pública, são eles: O Globo (RJ), Folha de S. Paulo (SP), O Estado de S. Paulo (SP), A Tarde (BA), Jornal do Commercio (PE), O Estado do Maranhão (MA), Diário do Nordeste (CE), Jornal Nacional, SBT Brasil, Jornal da Record e Agência Brasil. A análise qualitativa se ateve aos materiais jornalísticos não opinativos, totalizando 350 conteúdos analisados.

Verifica-se, por exemplo, que a referência ou nomeação de “pescadores/as” e “marisqueiros/as” é quase que apagada dos títulos dos jornais impressos estudados. Dos 16 títulos de O Globo, não há sequer uma menção às palavras “pescadores”, “pescadoras”, “marisqueiros” ou “marisqueiras”. Já na Folha de S. Paulo, dos 55 títulos listados, aparecem apenas três. O Estado de S. Paulo abordou o vazamento do petróleo em 31 títulos, mas somente em um referenciou as categorias dos trabalhadores/as atingidos/as.

“Quando fizemos a pesquisa, ficou explícita como a imprensa e o próprio Estado não reconhecem as mulheres negras e indígenas, pescadoras, marisqueiras e outras que vivem das águas, como sujeitas de direito, como silenciam e invisibilizam estas pessoas, daí a ideia de buscar espaços em que estas histórias e vozes pudessem ser amplificadas”, conta Iara Moura, jornalista e integrante do Intervozes.

Mulheres Negras Latino-americanas e Caribenhas

Também marcando o lançamento do Ondas da Resistência, na semana do Dia Internacional de Luta da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha e do Dia Nacional Tereza de Benguela, foi realizada, na sexta-feira, 24, a live “Mulheres Negras Latino-americanas e Caribenhas e a luta pelo Direito à Comunicação”.

A atividade foi transmitida ao vivo pelos perfis do Intervozes no Youtube e Facebook e contou com as presenças de Maryellen Crisóstomo (jornalista, quilombola, executiva da CONAQ), Leonor Soares (jornalista, militante feminista negra e interseccional, mestranda em Direitos Humanos na Universidade de Brasília, diretora do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e diretora da Federação Nacional dos/as Jornalistas), Alana Vieira (comunicadora afroperuana e feminista, com experiência em comunicação política. Ativista e sócia da Anistia Internacional Peru) e Vilma Almendra (indígena nasa-misak do Cauca na Colômbia, integrante do coletivo Pueblos en Camino). A mediação foi da coordenadora executiva do Intervozes, Gyssele Mendes.

Durante o projeto Ondas da Resistência, outras lives serão realizadas, com temáticas que discutirão direito à comunicação e justiça socioambiental.