A vida está acima do lucro
Por comunicainter em
Organizações da sociedade civil, redes, sindicatos e movimentos populares realizaram debate crítico em contraponto à Cúpula dos países do G20, trazendo a perspectiva dos povos e territórios na busca de alternativas aos desafios da atualidade
Por Aline Souza – Coletivo Intervozes
A Cúpula dos Povos frente ao G20,que aconteceu no Rio de Janeiro no dia 14 de novembro, abriu seus trabalhos convocando a cultura popular e a cultura dos povos originários para o palco central. Rodas de capoeira com maculelê e danças como o toré da Tekoa Ka’aguy Hovy Porã, com os indígenas guaranis da cidade de Maricá (RJ), se apresentaram na abertura, sob a grande bandeira da iniciativa, que apresenta a figura de uma jangada, instrumento de trabalho de pescadores, para simbolizar a resistência de quem navega bravas ondas e segue remando contra a maré e a busca pelo bem viver. O evento reuniu cerca de 700 pessoas na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e teve como mensagem central que povos e natureza não estão à venda e que a vida está acima do lucro.
A Cúpula dos Povos Frente ao G20 é uma agenda autônoma de movimentos sociais e da sociedade civil organizada crítico ao encontro dos líderes das potências mundiais e que denuncia questões como a dívida externa, as guerras e mecanismos de opressão Norte-Sul Global. Frente ao encontro dos chefes dos 20 países, reunidos no Rio de Janeiro entre 18 e 19 de novembro, a Cúpula dos Povos trouxe em seu painel inicialo tema “Governança capitalista internacional, contextos de guerra, reparações históricas contra o racismo e lutas anticapitalistas dos povos”. Na mesa, Cleuza Silva integrante da Articulação de Mulheres Negras do Brasil e da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político, lembrou do contexto de escravização e provocou o debate sobre reparação e como valorar a questão desse crime nas Américas e Caribe, algo já reconhecido pela ONU como imprescritível. De acordo com ela, cada país tem pesquisadores que seguem linhas diferentes para responder a essa questão. “Uma alternativa seria fazer a correção de quanto se pagou para os fazendeiros da época libertarem os escravizados e quanto tempo poderia viver um negro, se livre esse fosse. Precisamos aprofundar a questão da reparação e a temática do bem viver, que tem a ver com segurança alimentar, direito à terra, à água, poluição ambiental”, sugeriu.
Soraya Mislesh, escritora e jornalista, ativista da Frente de Defesa da Palestina em São Paulo, sintetizou que essa luta de resistência na Faixa de Gaza é a luta de todos nós, pois os inimigos da Palestina são os mesmos inimigos dos povos do mundo todo. Lembrou que a crise do capitalismo precisa fabricar guerras a todo tempo e que é nosso dever fabricar as revoluções, afinal “ninguém vai ficar parado esperando que os mate”. A estratégia de colonização, segundo ela, continua ocorrendo pois sempre foi importante colonizar a Palestina por se tratar de um centro de circulação e mercado entre África, Ásia e Europa. “Por tal motivo que a violência nunca parou desde 1948 e que na época levou à expulsão ou à fuga de 800 mil pessoas, num processo conhecido como Nakba (catástrofe). Ali é o laboratório do capitalismo genocida do mundo hoje, testam primeiro lá as armas e a tecnologia que vão servir para matar povos resistentes em outras partes do mundo. É um ciclo e resistir é nosso dever”, disse. Ao final da intervenção, a jornalista cobrou que o governo brasileiro rompa “relações econômicas, políticas e diplomáticas com Israel”.
O educador popular Dayron Roque Lazo, do Centro Memorial Martin Luther King Jr., contextualizou a questão geopolítica desde a segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria para dizer que até então o Sul Global foi lugar de dominação e de resistência, mas que agora passa a ter uma ofensiva de disputa pela hegemonia com o Norte Global. Ele afirmou que a melhor expressão disso é a emergência e expansão que o grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia e China) representa, mas concluiu que, no contexto de crise, “se não for resolvida pela esquerda, será resolvida, como é, pela direita com a emergência do neofascismo e de novas formas de sionismo”.
Transformar o mundo pelo feminismo
Após o painel de abertura, ocorreram quatro plenárias temáticas simultâneas. Um dos temas discutidos foi as lutas anticapitalistas e a governança mundial que precisa lidar com a crise ambiental que está cobrando dos mais pobres uma fatura alta. Os participantes apontaram para demandas por trabalho digno e redução da jornada 6×1 sem redução de salário. A atual jornada sobrecarrega quem está ocupado e aumenta o desemprego para muitos outros. A crítica foi feita sobretudo em relação às políticas de austeridade, a retirada de direitos trabalhistas e o aumento das privatizações, que se aprofundaram mundialmente sobretudo com a crise financeira de 2008, que nos últimos anos está evoluindo com a ascensão da extrema direita.
E é justamente a população feminina a mais afetada por esse recrudescimento. “O trabalho das mulheres é o mecanismo para ajustar as crises. Quando o Estado para de investir em saúde, quem cuida? Quando não tem escola, ou políticas para os idosos, quem é que cuida? Há uma percepção de piora da vida porque trabalhamos cada vez mais, trabalho pago e não pago, e estamos cada dia mais empobrecidos. Para nós, a alternativa precisa ser a partir da economia feminista, que coloque a vida no centro e não o lucro”, disse Ana Priscila Alves, da Marcha Mundial de Mulheres.
No debate sobre “Justiça Socioambiental e Climática”, os participantes enfatizaram a crise climática como um resultado do sistema capitalista e que esses temas precisam chegar a diferentes camadas sociais. Os participantes apontaram que as pretensas saídas para a crise climática reiteram violações de direitos e se apresentam como mais um “mecanismo de colocar a vida dos territórios na máquina de moer do Capital”. O público da Cúpula dos Povos concorda que o G20 tem pouco interesse em mudar de verdade a lógica do sistema que nos trouxe até aqui. Por isso é necessário reorganizar os movimentos populares, sobretudo com mais consciência quanto às reparações ao povo negro. O protagonismo das mulheres e a importância delas nos espaços coletivos de construção de direitos para a evolução social também foi enfatizado.
Transição energética para quem?
No mesmo dia da Cúpula dos Povos (14), o Intervozes lançou a pesquisa inédita “Vozes Silenciadas Energias Renováveis: a cobertura da mídia sobre a transição energética no Brasil” dentro da programação do G20 Social. A pesquisa analisa a cobertura dos veículos jornalísticos da mídia hegemônica nacional e local sobre os empreendimentos em solo brasileiro vinculados à ideia de “energia limpa”. O lançamento é parte da 2ª edição da Caravana Direito à Comunicação, programação itinerante que acontece este ano em 12 cidades de quatro regiões do Brasil.
Com o tema “Vozes Amplificadas por uma Transição Energética Justa – resistindo à desinformação climática e aos silenciamentos da mídia”, as participantes do debate denunciaram questões de violação graves para a saúde de quem vive nos locais onde esses empreendimentos são construídos e os danos ao meio ambiente. Além disso, destacaram a ausência de representantes dos territórios atingidos e da sociedade civil nos tipos de fontes ouvidas na cobertura midiática sobre o tema (cerca de 1,4% e 5% apenas, respectivamente). A pesquisa do Intervozes alerta também que a cobertura costuma ser rasa, focada apenas em inaugurações de obras desses megaempreendimentos ou polos de exploração com discursos salvacionistas do clima, sem espaço para os conflitos e violações de direitos decorrentes.
Outro ponto levantado é o léxico de palavras usado pela mídia para tratar do tema como sendo algo positivo, a exemplo dos “parques” eólicos, um tratamento bastante desonesto que oculta do debate público dimensões importantes . Os reais impactos não estão sendo tratados por esse conjunto de termos que escondem, por exemplo, o uso de cimento, lítio, minerais críticos como bauxita e grande quantidade de água para a existência desses empreendimentos. “A pobreza energética não está sendo combatida via políticas públicas, o real desenvolvimento que seja a partir das pessoas está sendo ignorado por essa transição energética liderada por grandes corporações”, afirma Soraya Tupinambá do Instituto Terramar.
A pesquisa evidencia que essa narrativa ignora os conflitos e desafios impostos a povos e comunidades tradicionais, agricultores/as, pescadores/as, marisqueiros/as e às espécies que habitam os diferentes biomas brasileiros.
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