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Em clima da desinformação, o acesso à comunicação é questão de justiça climática

Em clima da desinformação, o acesso à comunicação é questão de justiça climática

Às vésperas da COP30, o enquadramento midiático e seus discursos promovem zonas de sacrifícios na agenda climática

* por Maryellen Crisóstomo

A Amazônia sempre ardeu. Ardeu em chamas, em silêncio e em palavras. Agora, às vésperas da COP30, conferência climática que reunirá em Belém líderes de diversos países, ela arde também no campo das narrativas. Há muito tempo, o debate climático deixou de ser apenas um enfrentamento científico para se tornar uma disputa política e simbólica discursiva.

E é nesse terreno lamacento da comunicação pública que se travam algumas das batalhas mais decisivas do século XXI: a disputa de narrativas.

Enquanto o planeta ultrapassa sucessivos recordes de temperatura, o Brasil tenta se posicionar como potência verde. Nesse cenário, a COP30 é anunciada como a “COP da implementação”, o evento que deve confirmar compromissos concretos de redução de emissões e proteção das florestas. Essa esperança é ancorada no protagonismo do Brasil quando, anfitrião da Eco92, emplacou avanços significativos na agenda climática.

Contudo, há um abismo entre os acordos internacionais e a percepção cotidiana da população brasileira. Pesquisa do Instituto Ideia em parceria com o LaClima (2024) revelou que 71% das pessoas no país não sabem o que é a COP, e 34% desconhecem o conceito de mudanças climáticas. Em tempos de redes sociais, esse vácuo de informação se torna combustível perfeito para a desinformação, uma fumaça que encobre, distorce e manipula o debate ambiental.

As fake news sobre clima e Amazônia são construídas com precisão cirúrgica. Projetos como Amazônia Livre de Fake, coordenado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, mostram que essa desinformação não é um ruído espontâneo, mas um sistema articulado. Seus principais agentes orbitam em torno de interesses políticos e econômicos ligados ao desmatamento, ao agronegócio predatório e à mineração irregular.

Esses agentes disseminam conteúdos que negam a crise climática, relativizam o desmatamento, desacreditam cientistas e acusam organizações socioambientais de “atrapalhar o progresso”. Há também uma narrativa de soberania distorcida: dizem que proteger a floresta é “ceder à pressão internacional”, como se a Amazônia fosse refém de um complô estrangeiro. Essas mensagens são propagadas por grupos de WhatsApp, rádios comunitárias cooptadas, influenciadores regionais e parlamentares da chamada “bancada da motosserra”, que transformam o discurso antiecológico em bandeira política.

Ao mesmo tempo, as palavras “energia limpa” e “transição energética” circulam como mantras em discursos oficiais e empresariais, mas nem sempre carregam o sentido emancipatório que aparentam. A agenda climática aposta e investe em megaprojetos solares e eólicos como caminho para o futuro verde, enquanto grandes corporações utilizam o rótulo de sustentabilidade como vitrine de marketing.

Mas, em muitos casos, esses empreendimentos reproduzem velhas estruturas de poder: concentram lucros, ignoram comunidades locais e geram novos conflitos socioambientais e fundiários. No entanto, nas vozes dos povos da floresta, ribeirinhos, quilombolas e comunicadores populares, “energia limpa” adquire outro significado.

Ela se converte em símbolo de autonomia e dignidade, tendo em vista que energia solar comunitária, biogás sustentável, pequenas centrais de microgeração podem proporcionar às comunidades o controle sobre sua própria vida energética. Essa disputa semântica sobre o que é “limpo” revela o quanto a transição energética pode tanto libertar quanto submeter, dependendo de quem narra e de quem decide.

É nesse ponto que o Intervozes se torna essencial ao realizar pesquisas sobre narrativas que silenciam vozes de grupos étnicos afetados pelas mudanças climáticas e invisibilizados na agenda que debate as soluções. Sua atuação vai além da pesquisa e da denúncia sobre temas que ferem os direitos da população brasileira: propõe uma pedagogia da comunicação que articula tecnologia, território e direitos humanos.

Na pesquisa Amazônia Livre de Fake (2024), o coletivo combina monitoramento digital, mobilização comunitária e formação cidadã. A primeira frente rastreia postagens, hashtags e redes desinformativas para entender padrões e estratégias; a segunda organiza oficinas e rodas de conversa nos territórios amazônicos, discutindo clima e direitos com quem raramente tem acesso à informação qualificada; e a terceira promove letramento midiático, capacitando jovens e lideranças locais para identificar fontes seguras e desconstruir narrativas enganosas.

Essas ações se somam a um trabalho de investigação mais amplo, que o coletivo vem desenvolvendo há anos, que é a série Vozes Silenciadas. A pesquisa Vozes Silenciadas – Energias Renováveis (2024) mergulha nas contradições da cobertura midiática sobre a transição energética no Brasil e mostra como as pautas empresariais e governamentais predominam sobre as vozes comunitárias. O estudo revela que, em mais de 70% das matérias analisadas, as fontes prioritárias são empresas do setor e autoridades estatais, enquanto populações impactadas por parques eólicos, solares e hidrelétricos quase não aparecem.

O relatório denuncia um apagamento estrutural: a mídia e o Estado falam de energia limpa, mas silencia quem vive as consequências reais dessa transição. Além disso. tal narrativa camufla interesses e reproduz velhas práticas racistas, como destacam Alfredo Portugal e Nataly Queiroz Lima no artigo “Discurso e prática ‘salvacionistas’ sobre energias limpas reforçam racismo ambiental”.

Nessa mesma linha de pesquisa, em 2020, o Intervozes já havia lançado Vozes Silenciadas: A cobertura do vazamento de petróleo na costa brasileira, um estudo seminal que investigou como a grande mídia tratou um dos maiores crimes ambientais do país, ocorrido em 2019, aqui mencionado como crime porque desastres são decorrentes situações extremas da natureza. O trabalho mostrou que o episódio, que afetou mais de mil praias e devastou o sustento de comunidades pesqueiras do Nordeste, foi narrado pela imprensa de forma superficial, fragmentada e descontextualizada, priorizando a perspectiva técnica das autoridades e invisibilizando os sujeitos coletivos diretamente atingidos.

O estudo revelou, ainda, como o enquadramento do discurso ambiental na mídia brasileira tende a centralizar o olhar nas instituições e a marginalizar as experiências populares, criando um imaginário em que o povo aparece apenas como vítima, jamais como agente político.

Ao aproximar as duas publicações da série Vozes Silenciadas: o Petróleo e Energias Renováveis, o Intervozes constrói uma linha coerente de reflexão sobre a forma como a mídia tradicional reproduz desigualdades de voz no debate ambiental. Em ambos os casos, a crítica consiste na evidência de que o problema não é apenas o que se diz, mas o que se omite.

A ausência de sujeitos coletivos e racializados: pescadores, ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas, nas narrativas jornalísticas sobre meio ambiente e energia revela um déficit democrático na esfera pública brasileira. Esse silêncio institucional é, em si, uma forma de desinformação, uma narrativa, um posicionamento sobre quais são os corpos que acessam os benefícios desses processos de adaptação e mitigação e, quais são os corpos que pagam o preço pela implementação da adaptação e mitigação climática.

Ao articular Vozes Silenciadas e Amazônia Livre de Fake, o Intervozes desenha um mapa do poder informativo no campo climático. De um lado, mostra-se como a desinformação deliberada cria confusão e medo; de outro, evidencia-se como o silenciamento estrutural das vozes amazônicas e populares reforça a desigualdade simbólica e perpetua um modelo de transição energética excludente. Essa combinação de pesquisa empírica e ação pedagógica ilustra que o direito à comunicação é a base de toda transformação ambiental, porque a crise climática é, antes de tudo, uma crise de escuta.
O enfrentamento à desinformação, quando enraizado no território, pode gerar impactos sociais reais em um ambiente de disputa de narrativas que ainda não reconhece o direito à comunicação e informação como eixo estruturante da política climática.

A pesquisa sobre esses processos exige metodologia que contemple a observação participante, a etnografia comunicacional e a análise de discurso como instrumentos para compreender não apenas o que é dito, mas como, por quem e com que intenção. Entrevistas com comunicadores populares, gestores públicos e organizações ambientais podem revelar os entrelaçamentos entre poder, palavra e agenda climática. Essa escuta ativa, aliada à análise crítica de dados digitais, ajuda a identificar os fluxos da desinformação e as brechas pelas quais ela pode ser revertida em consciência coletiva.

Espera-se que esta reflexão ancorada nos documentos Amazônia Livre de Fake e as descobertas das pesquisas Vozes Silenciadas – Energias Renováveis e Vozes Silenciadas: A cobertura do vazamento de petróleo na costa brasileira, possam contribuir para combater a desinformação e fortalecer uma cultura de comunicação pública comprometida com a justiça climática. Porque, nesse cenário, há outras questões a serem observadas: como se estruturam as narrativas de desinformação na Amazônia? Que impactos elas produzem sobre a percepção pública e sobre as políticas locais de clima? E, sobretudo, que legado comunicativo a COP30 poderá deixar para a população brasileira e do mundo?

Ouso propor que, a resposta a essas perguntas passa por reconhecer que não haverá futuro sustentável sem democratização da comunicação. A COP30, deve ser lembrada como marco histórico, e precisa ir além dos compromissos diplomáticos e se converter numa arena de escuta: ouvir povos, movimentos, comunicadores e cientistas; reconhecer que a comunicação é também uma ação de mitigação climática.
No fim das contas, o que está em jogo é mais que a estabilidade do clima: é o direito de acesso a um processo de adaptação e mitigação que considere as especificidades da diversidade de povos que habitam o Brasil e o planeta, bem como o direito narrar a própria história.

A Amazônia, há séculos narrada como território de exploração, reivindica agora seu lugar como território de enunciação porque seus povos estão prontos para serem ouvidos. Por fim, trabalhos como o do Intervozes revelam que o combate à desinformação é uma forma de justiça ambiental, uma luta por informação em meio à fumaça que protege a concentração: de narrativas, de renda e de privilégios.

* Maryellen Crisóstomo é quilombola, jornalista associada ao Intervozes e graduanda em Direito.