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Entrevista com Gave Cabral: a integridade da informação no contexto da COP30

Entrevista com Gave Cabral: a integridade da informação no contexto da COP30

Em meio ao lobby corporativo, distribuição de brindes e teorias da conspiração, a atuação dos movimentos sociais também ganhou destaque durante o evento

por Alex Pegna Hercog*

Durante o mês de novembro, representantes de todo o mundo estiveram em Belém, no Pará, participando da COP 30 – a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. Entre debates e negociações protagonizados pelos líderes mundiais e lobistas empresariais vindos de diversos setores, os movimentos sociais também estiveram presentes pautando discussões e propostas alinhadas à defesa da vida e dos territórios.

Em entrevista realizada por Alex Hercog com Gave Cabral, foi destacada a importância da integridade da informação, transversal aos principais pontos discutidos na COP. Gave é natural do Amazonas, jornalista e educador popular, membro do Intervozes e da Abaré Escola de Ativismo. Ele também é coordenador do projeto “Amazônia Livre de Fake”, realizado pelo Intervozes em parceria com coletivos da região amazônica, e que mapeou a cadeia de desinformação na Amazônia. Abaixo, a entrevista realizada:

 

A.H.Gave, quais as principais atividades que você participou e debates que acompanhou durante a COP?

Gave – Meu foco foi acompanhar a agenda da integridade da informação, que é a ideia de que é necessário termos informações acessíveis, confiáveis, verificadas, para um melhor debate público sobre o clima. Essa foi a primeira vez que esse tema entrou de forma mais robusta dentro das discussões oficiais da COP. A gente teve dois dias temáticos para falar disso, além de atividades que se estenderam durante todo o período da COP. Um levantamento do Observatório da Integridade da Informação mapeou mais de 100 atividades e painéis sobre esse tema, tanto nas zonas oficinas quanto em espaços paralelos, ao redor da cidade.

Participei de um painel, representando o Intervozes, sobre a obstrução climática no Brasil e no mundo. Aproveitei para fazer um paralelo entre as violações do direito à comunicação e a obstrução climática, partindo de violações como a concentração de mídia, políticos donos da mídia, cobertura enviesadas, e participação de figuras políticas no financiamento à desinformação.

 

E em relação aos debates sobre integridade da informação que você acompanhou, quais foram os principais destaques, consensos ou problemas apresentados?

No âmbito das negociações formais, houve o consenso da importância de que o debate público seja cristalino e municiado de informações confiáveis. Teve uma carta aberta, inclusive assinada pelo Intervozes, puxada pelo CAD (Ações Climáticas contra a Desinformação), com mais de 400 assinaturas, convocando os países a assumirem esse compromisso e focando no combate à desinformação sobre os combustíveis fósseis. No mesmo dia, o Brasil fez uma declaração com outros países reconhecendo a importância do debate, afirmando que isso precisa ser assegurado. Mas não chega no detalhamento do que fazer, quais as ações, e cada país vai definindo sua estratégia.

Os países têm que pensar estratégias, local, nacional e internacional para garantir a integridade da informação e isso tem que envolver múltiplos atores (sociedade civil, academia, comunicadores populares, jornalistas, empresas privadas, etc). Essa é a ideia da provocação dessa declaração global. E, o “grande sucesso”, é que a integridade da informação entrou na declaração final da COP – uma frasezinha, afirmando que é importante promover a informação. O Lula também falou, na abertura da COP, que era preciso superar o negacionismo e que essa era a “COP da verdade”. Então, ele deu a deixa. E aí entrou uma frase no final da declaração.

Isso é um “grande sucesso”, pois é difícil ter um consenso com mais de 150 países para decidir um documento. E, com tantas coisas sendo vetadas, ficou a integridade da informação. E pela primeira vez ela apareceu sendo reconhecida e afirmando ser essencial a integridade da informação nesse contexto climático. Isso foi no espaço oficial. E eu senti duas coisas: primeiro, uma percepção geral de integridade da informação voltada ao debate de desinformação, como se o único ou o maior problema fosse a desinformação; e também muito capturado pelo jornalismo e pelo governo – sociedade civil e academia muito em segundo plano, com pouca representatividade nesse debate.


Sobre essa sua percepção, de que o debate sobre integridade da informação estava exclusivamente ou prioritariamente relacionada à desinformação, quais pontos você sentiu falta? Por que a integridade da informação não é só sobre desinformação?

Integridade da informação é um conceito relativamente novo. É algo que está na moda hoje, sendo discutido em diversos espaços aqui no Brasil. É um tema guarda-chuva para várias outras práticas, mas que também é um conceito que está em disputa. Nós do Intervozes ainda estamos formulando sobre o que pensamos sobre isso. Mas eu sempre penso a integridade da informação a partir do direito à comunicação. Por isso, quando eu falo que me incomoda, de alguma forma, que esse debate seja muito focado em desinformação… primeiro porque eu acho que a desinformação é um sintoma, não é a doença em si. É uma evidência de que temos o problema.

Mas o grande problema não é a desinformação. A desinformação acontece porque uma série de fatores propiciam que a desinformação aconteça e floresça. A gente tem esse sistema de comunicação que foi completamente apropriado pelo capital e a desinformação, como foi observado no projeto “Amazônia Livre de Fake”, tem esse caráter econômico-político. Quando a gente vai cavando, a gente vai vendo os interesses econômicos falando mais alto, reverberando nos interesses políticos e nas questões sociais. Mas quando a gente pensa em todo o esforço para combater a desinformação, se não for acompanhado de uma mudança profunda desse sistema de comunicação e informação no Brasil e no mundo, acredito que ele não será efetivo, o problema vai persistir.

Pode não ter desinformação, mas terá a mídia super parcial, financiada por empreiteiras, por mineradoras, por petroleiras, por várias empresas, para dizer, por exemplo, que a Petrobrás lidera a transição energética, ao mesmo tempo em que ela quer explorar petróleo no foz do Amazonas. Ou pra dizer que as eólicas são o futuro da energia renovável, sabe? Esse tipo de distorção permanece, mesmo quando a gente trabalha a desinformação. O que a gente tem pensado para essa pauta da integridade da informação é uma agenda mais propositiva e positiva, não apenas de combater a desinformação, mas de pensar um outro sistema de comunicação, no fortalecimento da comunicação popular, das formas comunitárias. A nossa perspectiva de integridade da informação deveria caminhar nesse sentido, de pensar a partir da educação popular, do diálogo com os movimentos. E essa ideia fica completamente opaca quando a gente pensa só em desinformação. Até porque, muitas vezes, os movimentos sociais não são considerados como fontes para o jornalismo, por exemplo. Então, tem várias questões que se entrelaçam e, pra gente, é importante pensar essa pauta de forma positiva, de pensar uma comunicação cidadã.

A iniciativa brasileira de integridade da informação sobre a mudança do clima é organizada em seis eixos: pesquisa e mapeamento do debate público no ambiente digital; comunicação estratégica; sustentabilidade do jornalismo; proteção de comunicadores e ambientalistas; responsabilização e proteção de direitos, ações e políticas de incentivo à integridade da informação; e educação midiática. Então, resumir tudo isso, papéis e responsabilidades, à desinformação ou só ao papel do jornalismo, enfraquece essa ação conjunta e coletiva, que é o caminho que o Intervozes acredita.

 

Diante da participação de muitos políticos, empresas e lobistas atuando nas negociações da COP, foi possível, para os movimentos sociais, incidir nas discussões?

Acho que essa foi a COP da sociedade civil. A gente teve avanços muito importantes, além da pauta de financiamento. Mas a gente teve avanços na pauta de adaptação climática, um tema que vem ganhando espaço nas COPs, falar não apenas de mitigação, mas de adaptação. Inclusive, com o lançamento do acelerador de implementação do acordo de Paris, isso foi muito importante. Mas acho que a sociedade civil impediu alguns retrocessos e deu o tom de muitas coisas. Por exemplo, houve um movimento de diversos países para retirar o termo “gênero” do documento oficial da COP. E ele não saiu justamente por uma pressão muito forte da sociedade civil, um trabalho muito importante para reconhecer que a justiça climática também é uma questão de justiça de gênero. O Brasil demarcou quatro terras indígenas e avançou no processo de outras 37. A gente teve um compromisso intergovernamental de proteção de terras. Então, acho que tivemos alguns avanços muito importantes, que talvez não tenham tido tanta repercussão quanto o documento final, mas que são importantes e mostram o engajamento da sociedade civil, tanto para impedir retrocessos, quanto para impulsionar alguns avanços “silenciosos”, que não repercutem tanto, mas que são importantíssimos para criar um ecossistema de proteção de territórios e de vidas.

 

No projeto Amazônia Livre de Fake foram identificados diversos políticos da região que financiam ou são disseminadores de desinformação em questões ligadas à Amazônia, sobretudo relacionadas com a mineração e o agronegócio. Esses políticos estavam presentes na COP? Qual foi o discurso adotado por eles?

Eu até encontrei alguns políticos em alguns eventos. É muito curioso. O discurso, em geral, é adaptado. Ia se adaptando conforme o ambiente. Em alguns, era um discurso mais contido, eu diria até honesto, em relação a questões socioambientais. Mas em outros espaços, na Câmara, nas redes sociais, o discurso vai numa linha completamente oposta.

Eu ouvi um discurso do governador do Amazonas [Wilson Lima] que eu não acreditei (risos), mas a gente percebe a estratégia. Emula-se um discurso de sustentabilidade, de preocupação com a agenda climática, inclusive falseando um pouco as propostas. Porque a gente tem esses políticos totalmente desenvolvimentistas e que usam dados completamente equivocados para embasar – por exemplo, tinha uma narrativa que a gente via durante a CPI das ONGs, principalmente da bancada do Mato Grosso, que era de ataque aos territórios indígenas, afirmando algo como “a floresta em pé representa a barriga vazia”, que manter a floresta nativa de um território atrapalhava o agronegócio, atrapalhava o desenvolvimento e gerava insegurança alimentar. Esse era o raciocínio. Que não faz o menor sentido! Mas era o raciocínio que esses deputados faziam. Mas ninguém vai ser maluco de fazer esse tipo de raciocínio em um evento do nível da COP. Porque isso é algo que não se sustenta, sob base nenhuma. Então, há uma adaptação dessa narrativa e faz parte da estratégia de greenwashing [publicidade normalmente feita por empresas violadoras para vender uma imagem de “ambientalmente responsável”], uma estratégia que é mais polida, até mais simpática, mas que só camufla o que de fato os interesses representam.

Uma coisa curiosa: nos stands dos governadores da Amazônia Legal são disponibilizados alguns informativos e material de divulgação. E eu achei curioso que um pessoal dos movimentos sociais substituiu todo o material de propaganda do governo do Mato Grosso por materiais que desmentiam as narrativas do governo, questionando o modelo de agronegócio. Achei interessante. Uma ação silenciosa, mas que tem um impacto. Substituiu o material de propaganda do governo em um espaço onde isso é possível. Tem uma estratégia ali, de maquiar muito as coisas nesses espaços, mas eu percebi que a sociedade civil está bem atenta, reativa, pronta e disposta a combater e apontar isso nesses espaços também.

 

E em relação à estratégia do setor empresarial, dos lobistas, teve algo que chamou sua atenção?

O que eu percebi, com muita força, foi uma estratégia mais corporativa, de empresas do setor do agronegócio, da mineração, dos bancos, do setor financeiro, que foi a distribuição de brindes para atrair o público local. Isso movimentou bastante os espaços da “green zone”. Em troca de um brinde, muitas pessoas precisavam fazer um cadastro e fornecer dados pessoais, seguir um perfil de rede social ou até mesmo assistir a alguma palestra dessas empresas. Faziam isso em troca de brindes, como bolsas, agendas, garrafas térmicas, comida, joias, todo tipo de brinde. Eu vi muito nas redes sociais essa divulgação, pessoas promovendo os brindes das empresas. Tinha muito essa disputa pelo público. As pessoas olham isso e falam “nossa, a empresa tal está em um evento ambiental dando brinde, afirmando na cartilha que o que ela faz é ótimo, maravilhoso”.

Acho que isso foi uma estratégia muito utilizada junto à opinião pública. Fora que, em muitos desses espaços, inclusive das empresas, havia participação de governadores e políticos. Havia uma estratégia repetida de questionar os dados oficiais – “os dados de desmatamento não são esses, são muito menores”, “os dados do Brasil não são alarmantes”. Manipulavam os dados. E também tinha algo conspiracionista, um discurso de que os outros países querem mandar no Brasil, que organizações estrangeiras querem atribuir uma pauta super rigorosa, algo nesse sentido. Essa era uma estratégia também e que chegava muito no público.

* Alex Pegna Hercog é baiano, comunicador social e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social