Nesta quinta-feira (23/04), dezenas de organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes, protocolaram carta endereçada à Presidenta Dilma Rousseff contra o anúncio feito recentemente pelo Palácio do Planalto de que o governo brasileiro assinaria um acordo com o Facebook. O projeto, intitulada Internet.org, já desenvolvido em diversos países da América Latina, África e Ásia, pode colocar em risco o futuro da sociedade da informação, da economia no meio digital e os direitos dos usuários na rede, como a privacidade, a liberdade de expressão e a neutralidade da rede.

Na avaliação dos signatários, ao prometer acesso gratuito e exclusivo a determinados serviços e aplicativos, a iniciativa do Facebook, na verdade, limita o acesso à Internet aos demais serviços existentes na rede e oferece aos que têm menos recursos econômicos o acesso à apenas uma parte do que constitui a Internet. Tal prática viola os fundamentos e princípios basilares do Marco Civil da Internet, da Declaração Multissetorial do NETMundial e dos Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil do CGI.br.

A carta também fui entregue ao Ministro da Cultura, Juca Ferreira, durante reunião do Ministério com a sociedade civil sobre a agenda da cultura digital, realizada nesta quinta-feira em Brasília. E será protocolada no Ministério da Justiça, endereçada ao Ministro José Eduardo Cardozo, nesta sexta.

Leia abaixo a íntegra do documento:

São Paulo, 23 de Abril de 2015

À Exma.
Presidenta da República Federativa do Brasil
Sra. Dilma Rousseff

CC:

Ministro Juca Ferreira – Ministério da Cultura
Ministro José Eduardo Cardozo – Ministério da Justiça

Att.: Carta à Presidenta Dilma Rousseff sobre o acordo com o Facebook

Exma. Sra. Presidente,

As organizações e indivíduos abaixo-assinados manifestam sua contribuição ao debate com relação ao recente anúncio realizado por Vossa Excelência durante a 7ª Cúpula das Américas sobre o estabelecimento de uma parceria com o Facebook para a implementação do projeto “Internet.org” no Brasil.

Embora estejamos de acordo com o diagnóstico de que há um grande déficit na qualidade e na extensão do acesso à Internet fixa e móvel em países em desenvolvimento como o Brasil, consideramos que este projeto, promovido pelo Facebook em diversos países da América Latina, África e Ásia, pode colocar em risco o futuro da sociedade da informação, da economia no meio digital e os direitos dos usuários na rede, como a privacidade, a liberdade de expressão e a neutralidade da rede.

Pelo que foi apurado sobre o projeto até o momento, acreditamos que ao prometer acesso gratuito e exclusivo a determinados serviços e aplicativos o Facebook está na verdade limitando o acesso à Internet aos demais serviços existentes na rede e oferecendo aos que têm menos recursos econômicos o acesso à apenas uma parte do que constitui a Internet, o que viola os fundamentos e princípios basilares do Marco Civil da Internet (Lei nº 12965), da Declaração Multissetorial do NETMundial e dos Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil do CGI.br (RES/2009/003/P), conforme elencamos a seguir:

  • A lei nº 12965 institui como fundamento do uso da Internet a liberdade de expressão, o reconhecimento da escala mundial da rede, a pluralidade e a diversidade, a abertura e a colaboração, a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor (art.2º), assim como reconhece os princípios da proteção à privacidade, a preservação e garantia da neutralidade de rede e a garantia da preservação da natureza participativa da rede (art.3º). Lembramos também que a referida lei estabelece como objetivo do uso da Internet o direito de acesso a todos, o acesso à informação, ao conhecimento, à participação na vida cultural e política, a inovação e a adesão a padrões tecnológicos abertos(art.4º);

  • O Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet (NETMundial) reconheceu que a Internet é um recurso global que deve ser gerida pelo interesse público e identificou um conjunto de princípios comuns e valores, dentre os quais gostaríamos de ressaltar o caráter de espaço unificado e não fragmentado, onde datagramas e informação fluam livremente de ponta a ponta independentemente de seu conteúdo legal, a proteção e promoção da diversidade cultural e linguística, a arquitetura aberta e distribuída, preservando o ambiente fértil e inovador, a promoção de padrões abertos consistentes com os direitos humanos e com o desenvolvimento e a inovação na rede, e a preservação de um ambiente favorável à inovação sustentável e à criatividade, reconhecendo o empreendedorismo e o investimento em infraestrutura como condições para a inovação;

  • Os Princípios para a Governança e Uso da Internet do Brasil aprovados pelo CGI.br, o Comitê Multissetorial de Governança da Internet no Brasil, buscam embasar e orientar ações e decisões com vistas à governança democrática e colaborativa, preservando e estimulando o caráter de criação coletiva da Internet, a universalidade, a diversidade, a inovação, a neutralidade e a padronização e interoperabilidade da rede.

Enfatizamos ainda que essa estratégia do Facebook e de outras grandes empresas, realizada em parceria com as operadoras de telecomunicações, representa uma grave violação da regra da neutralidade quando promove “acesso para todos” sob a máxima “internet grátis”. Esta prática que permite que apenas alguns aplicativos e serviços tenham privilégios na rede é conhecida internacionalmente como zero-rating (taxa zero) e, mesmo que possibilite o uso dos serviços mais populares, no longo prazo acaba gerando concentração da infraestrutura e monopólio sobre o tráfego de dados na rede, reduzindo tanto a disponibilidade de conteúdos, aplicativos e serviços na Internet, quanto a liberdade de escolha do usuário. Com isso, cabe perguntarmos como se espera que o Brasil desenvolva o setor de aplicativos, um dos mercados que mais cresce no mundo, se estes terão limitado seu acesso a grande parte da população.

O modelo proposto pelo projeto Internet.org também traz efeitos desastrosos ao desenvolvimento de culturas regionais, comprometendo o direito de acesso à informação ao violar outro princípio fundamental do Marco Civil e da declaração Multissetorial do NETMundial, que é a liberdade de expressão. Em geral, plataformas como Facebook controlam por meio dos seus algoritmos e termos de uso os conteúdos e dados que circulam na rede, determinando de maneira centralizada e de acordo com critérios próprios e pouco transparentes os conteúdos mais visualizados pelos usuários. Tal cenário se agrava se lembrarmos que boa parcela da receita das empresas de Internet e operadoras de telefonia são hoje provenientes da venda de aplicações e conteúdos que acabam sendo fornecidos de forma imposta e verticalizada nos pacotes de serviços. A formação de conglomerados econômicos, devido ao processo de convergência dos meios de comunicação, tem feito com que as empresas que prestam serviços de acesso à Internet sejam as mesmas que fornecem conteúdos, gerando ainda mais concentração. Essa redução do número de serviços e aplicativos disponíveis resulta no desrespeito ao direito de escolha dos consumidores e à livre concorrência, na limitação da diversidade cultural e no cerceamento do livre fluxo de informações na rede.

Não podemos esquecer ainda que a plataforma tecnológica do Facebook tem sido uma das principais portas para a vigilância em massa, colocando em risco outro importante princípio do Marco Civil e da declaração Multissetorial do NETMundial que é a privacidade dos cidadãos. A ausência de uma lei de proteção de dados no país agrava o problema e faz com que hoje os possíveis usuários dos serviços que serão disponibilizados pelo Internet.org fiquem vulneráveis aos interesses comerciais dessa plataforma e às pressões políticas que uma empresa com sede nos Estados Unidos está sujeita.

É por considerar que a universalização do acesso à Internet se dá a partir de políticas coerentes com a sua essencialidade, o que passa pela prestação do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte também em regime público e pelo fortalecimento de políticas já existentes, tais como cidades digitais, provedores comunitários integrados a telecentros, pontos de cultura, GESAC, estações digitais e iniciativas de comunicação comunitária, que nos posicionamos veementemente contra o acesso privilegiado ao mercado e aos dados dos brasileiros que o Facebook pretende obter com seu projeto através do Internet.org. Cabe também mencionar que existem excelentes alternativas internacionais que poderiam ser aproveitadas, tais como o Plan Ceibal no Uruguai, que busca fomentar as redes livres, o GuifiNet, uma parceria entre sociedade, ONGs e governos, OpenWRT, Commotion Wireless, entre outros.

Por último, vale lembrar que o Brasil possui um enorme contingente de organizações e ativistas que vêm atuando na promoção da inclusão digital. Ainda que nas políticas de acesso à banda larga o diálogo entre governo e sociedade civil não tenha se estabelecido de maneira satisfatória como ocorreu no Marco Civil, a aprovação da lei e seu processo de regulamentação são exemplares no incentivo à participação social e na existência de um canal efetivo de interlocução entre ambos os setores. A notícia de uma parceria com a empresa Facebook sem qualquer conhecimento prévio da sociedade civil, no entanto, diverge da postura democrática, transparente e inclusiva que tem sido adotada nas decisões e discussões relacionadas ao Marco Civil da Internet.

Conforme o exposto acima, concluímos que é de extrema importância que se preserve o desenvolvimento da economia digital e que se garantam os direitos estabelecido pela Marco Civil da Internet assim como os princípios estabelecidos no encontro multissetorial NETMundial. Assim, as entidades ora signatárias requerem:

  1. Que não sejam firmados quaisquer acordos com a empresa Facebook no âmbito da sua iniciativa Internet.org que tenham como objeto o provimento de acesso grátis à Internet;

  2. Que quaisquer acordos que venham a ser firmados com a empresa Facebook – ou quaisquer outras empresas – respeitem os direitos positivados pelo Marco Civil, em especial o da neutralidade de rede; e

  3. Que se busque realizar amplo debate com a sociedade civil antes de fechar acordos desse tipo.

Desde já nos colocamos à disposição para um encontro presencial com Vossa Excelência para debatermos melhor o assunto e certos de sua habitual atenção, subscrevemos.

Alquimídia
Artigo19
Associação Software Livre do Brasil – ASL
Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé
Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada
Co:Laboratório de Desenvolvimento e Participação – COLAB/USP
Coletivo Digital
Coletivo Soylocoporti
Fora do Eixo
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – FNDC
Frente Acorda Cultura
Hacklab Independência
Instituto Bem Estar Brasil
Instituto Beta Para Internet e Democracia – IBIDEM
Instituto de Defesa do Consumidor – Idec
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Mídia Ninja
Movimento Mega
PimentaLab – Unifesp
PROTESTE – Associação de Consumidores
Recursos Educacionais Abertos Brasil – REA-Br
Rede Livre
União Latina de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura – ULEPICC-Br
youPIX

Anahuac de Paula Gil
Augusto César Pereira da Silva
Bruno Freitas
Camila Agustini
Diego Viegas
Hilton Garcia Fernandes
Iuri Guilherme dos Santos Martins
Raphael Martins
Reinaldo Bispo
Thadeu Cascardo
Thiago Zoroastro