Para grande parte das pessoas LGBTI+, as redes sociais configuram-se não apenas como espaços de expressão e sociabilidade, mas como instrumentos indispensáveis para o trabalho, a educação, o acesso à informação e, em muitos casos, para a própria sobrevivência. Inseridas em um contexto histórico de vulnerabilidade social e institucional, a conectividade digital representa, para essas populações, uma estratégia de afirmação de identidade, construção de autonomia e articulação de redes de apoio em meio à violência cotidiana. No entanto, o mesmo ambiente virtual que oferece oportunidades pode se tornar um espaço marcado por hostilidade, especialmente diante da crescente circulação de discursos de ódio e desinformação dirigidos à população LGBTI+, com impactos concretos sobre sua saúde mental, segurança e dignidade. 

É nesse cenário que se insere a pesquisa Explana 2.0, realizada por meio de uma parceria entre o Data_labe e o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. O estudo tem como objetivo mapear e compreender as dinâmicas de circulação de discursos discriminatórios nas redes, identificar seus emissores e mensurar seus efeitos sobre a vida de pessoas LGBTI+ em distintos territórios do estado do Rio de Janeiro. Para isso, foram conduzidos cinco grupos focais e aplicado um questionário estruturado com 22 perguntas, no período de agosto a setembro de 2024. 

O projeto Explana 2.0 integra um esforço coletivo da sociedade civil para produzir e analisar dados sobre as desigualdades e violências vividas por pessoas LGBTI+ em contextos de vulnerabilidade social. Essa produção de conhecimento contraria a narrativa institucional de 

que faltam evidências sobre essas violências — revelando, na verdade, a omissão do próprio Estado em reconhecê-las e enfrentá-las. Nesse contexto, destaca-se o trabalho do Observatório de Violências LGBTI+ em Favelas, iniciativa do Grupo Conexão G, que desde 2022 documenta violações de direitos em territórios periféricos. Em 2024, o projeto lançou seu primeiro dossiê anual, sistematizando dados e experiências que reforçam a urgência de políticas públicas voltadas à proteção dessa população.  

No âmbito do projeto Explana 2.0 e de sua incidência no Complexo de Favelas da Maré, a mobilização territorial foi coordenada pelo Grupo Conexão G, organização local que articulou a participação de residentes LGBTI+ na produção de dados. Embora a pesquisa tenha abrangido também municípios como Belford Roxo, Japeri, Ilha do Governador e Petrópolis, este material focaliza exclusivamente nos dados oriundos da Maré, com base nas respostas de 15 pessoas LGBTI+ que vivem e acessam a internet cotidianamente a partir deste território. 

Este exercício inicial de análise dos dados produzidos tem por objetivo evidenciar e compreender não apenas os padrões de acesso e uso das redes, mas também as manifestações de violência digital e suas interseções com marcadores de classe, raça, gênero e território. A Maré não é aqui representada apenas como espaço geográfico de moradia, mas como um território de disputa e resistência também no plano digital. 

Entre a conexão cotidiana e a exposição à violência digital 

A totalidade das pessoas entrevistadas afirmou acessar a internet diariamente ou quase todos os dias, indicando um alto grau de conectividade. Contudo, essa presença online é acompanhada de exposição contínua a conteúdos violentos: 93,3% relataram já ter se deparado com discursos de ódio ou desinformação contra pessoas LGBTI+. 

Os dados demográficos refletem a intersecção de múltiplas vulnerabilidades. A maioria das pessoas ouvidas se identifica como preta (53,3%) ou parda (33,3%), compondo um retrato marcadamente negro da população LGBTI+ da Maré. No que se refere à identidade de 

gênero, 60% do grupo é composto por pessoas transvestigêneres — incluindo mulheres trans, travestis e homens trans. Também participaram pessoas não binárias (13,3%), que, embora muitas vezes também se identifiquem como trans, foram aqui consideradas como um grupo específico conforme sua autodeclaração no questionário. Completam o grupo mulheres cis (20%) e homens cis (6,7%). Quanto à orientação sexual, predominam as identidades heterossexual (53,3%) e bissexual (20%). O alto percentual de pessoas heterossexuais se explica principalmente pela presença majoritária de pessoas trans e travestis na amostra 

A escolaridade revela barreiras persistentes ao acesso à educação formal: 66,7% das entrevistadas possuem, no máximo, o ensino médio completo, e apenas 20% cursaram o ensino superior. A renda mensal também evidencia a precariedade econômica: dois terços das respondentes (66,7%) têm rendimentos entre R$ 501,00 e R$ 1.412,00, situando-se próximas ou abaixo da linha da pobreza, conforme parâmetros nacionais. Esses dados apontam para uma realidade de desigualdade estrutural que atravessa as vivências LGBTI+, em especial de pessoas trans, negras e periféricas. 

A internet como ferramenta de sobrevivência — e campo de conflito Embora o acesso à internet esteja presente de forma cotidiana, sua qualidade e estabilidade permanecem desiguais. A maioria das entrevistadas (86,7%) possui acesso diário à internet fixa, embora as atividades online sejam realizadas majoritariamente por meio de telefones celulares, que muitas vezes são o único dispositivo disponível. Celulares, notebooks e, em menor escala, televisores, videogames ou computadores de mesa, compõem o conjunto de equipamentos utilizados. 

Essa configuração revela uma desigualdade digital significativa: estar online não equivale, necessariamente, a estar em condições adequadas para trabalhar, estudar, acessar e produzir conteúdos e mesmo proteger-se virtualmente. Em diversos casos, o acesso é 

viabilizado por planos pré-pagos com franquias de dados limitadas, o que compromete o uso de plataformas de vídeo, ferramentas de trabalho e canais de comunicação em tempo real. Ainda assim, a internet cumpre papel central nas atividades cotidianas. As redes são utilizadas para estudar, trabalhar, vender produtos, produzir conteúdo, gerir perfis profissionais e acessar informações culturais e jornalísticas. A conectividade não é algo acessório, mas uma necessidade — vivenciada, no entanto, em condições precárias e sem garantias mínimas de segurança digital. 

A violência digital como realidade cotidiana 

A exposição à violência online é um dado recorrente: 93,3% das pessoas entrevistadas já se depararam com discursos de ódio ou desinformação voltados à população LGBTI+. Em 46,7% dos casos, os ataques foram direcionados diretamente às entrevistadas, e em 13,3%, a pessoas de seu convívio próximo. Tais episódios não são percebidos como incidentes isolados, mas como parte da experiência diária de quem habita o ambiente digital. 

Sobre a autoria dos conteúdos ofensivos, 53,4% afirmaram que os responsáveis eram desconhecidos, enquanto 26,7% identificaram pessoas de seu próprio círculo social. Isso evidencia que as violências circulam tanto em redes amplas e anônimas quanto em espaços íntimos, como grupos familiares ou de amigos. 

As plataformas mais citadas como vetores de disseminação foram Facebook e Instagram, seguidas por WhatsApp, Twitter/X e YouTube. Os espaços de circulação incluem tanto grupos abertos com pessoas desconhecidas (mais de 50%) quanto grupos familiares (26,7%). Além disso, 78,5% das entrevistadas relataram que, na maioria das vezes, não há qualquer tipo de sanção contra os responsáveis pelas publicações ofensivas. Casos de remoção de conteúdo ou suspensão de perfis são minoritários e esporádicos. 

Em relação à origem geográfica dos discursos, metade das participantes acredita que esses conteúdos são majoritariamente produzidos fora da Maré, enquanto 42,9% não souberam 

identificar a procedência. Isso revela que, embora as violências não estejam conferidas somente aos limites físicos do território, seus efeitos são profundamente sentidos no cotidiano local. 

O ambiente digital como extensão das violências estruturais 

A pesquisa revela uma contradição central: o acesso à internet, embora frequente, não garante liberdade, segurança ou equidade para pessoas LGBTI+. Ao contrário, o ambiente digital tem reproduzido — e por vezes intensificado — as mesmas lógicas de exclusão, opressão e silenciamento que marcam o mundo físico, sobretudo para pessoas trans, negras e moradoras de favelas. 

As redes, que poderiam funcionar como ferramentas de ampliação de direitos, frequentemente se transformam em territórios hostis diante da ausência de regulação eficaz e da escassez de políticas públicas voltadas à proteção digital de populações vulnerabilizadas. As violências, neste contexto, não são aleatórias: são sistemáticas, previsíveis e orientadas por estratégias de difusão deliberada de discursos moralistas, transfóbicos e sensacionalistas. 

Um exemplo emblemático dessa lógica é a disseminação da desinformação conhecida como “mamadeira de piroca”, fake news amplamente propagada durante o processo eleitoral de 2018. Outros boatos — como a falsa existência de uma “boneca trans” inventada para atacar políticas de diversidade na infância, ou a difamação do slogan “Jesus é Travesti” — ilustram a utilização recorrente de narrativas fabricadas para incitar pânico moral e sustentar agendas políticas conservadoras. 

A proteção da cidadania digital de pessoas transvestigêneres e demais identidades LGBTI+ exige o reconhecimento da internet como um espaço de disputa política e simbólica. A compreensão da centralidade da conectividade para a sobrevivência dessas populações, em especial nas periferias urbanas, deve ser acompanhada de medidas concretas para garantir 

segurança, acesso qualificado e dignidade no uso das tecnologias. A pesquisa Explana 2.0 evidencia que, enquanto tais medidas não forem implementadas, o espaço virtual seguirá reproduzindo — e agravando — as desigualdades do mundo real.