NOTA DE REPÚDIO
O AquiPE precisa se retratar para poder se autointitular de jornal

Um dos principais perigos do jornalismo refém dos princípios mercadológicos é tratar a informação como algo descontextualizado, perecível e como um retrato do senso comum, ainda que seja preconceituoso. Com isso, as vidas envolvidas na cobertura podem ser enredadas numa teia de descartabilidade incoerente com a função social do jornalismo e com os princípios éticos da profissão.

Na semana passada, dia 01/09/2017, a moradora de rua Diana estampou a capa do Aqui PE. Espancada até a morte pelo “companheiro”, seu corpo quebrantado foi encontrado em um estacionamento privado no Recife Antigo. A foto selecionada enfocava parte de sua genitália descoberta sob a saia. A exposição sensacionalista do corpo de Diana foi uma segunda violação – simbólica deveras, mas nem por isso menos grave. O tratamento jocoso e sádico do caso é mais uma prova da irresponsabilidade desse tipo de periódico com a vida das mulheres, em especial se forem pretas e pobres.

Em um país como o Brasil, onde a cada duas horas uma mulher é assassinada e a cada 15 segundos, acontece alguma agressão às mulheres, o jornalismo não pode virar as costas para essa realidade. Na profissão, uma das máximas que nos orienta é o princípio do valor-notícia, notícia essa que precisa ser tratada para que a informação sirva ao interesse público. A abordagem esvaziada dada ao caso foi mais um exemplo da objetificação do corpo das mulheres, usado como isca para vender um periódico autointitulado de jornal. Reiteramos: infelizmente não foi algo isolado, visto que, em suas páginas, os corpos femininos são, cotidianamente, expostos como objetos de desejo masculino, como algo violável. E isso não pode passar despercebido.

Um estudo do Ministério da Saúde aponta que as notificações de estupro coletivo subiram de 1.570 em 2011 para 3.526, em 2016. São 10 estupros coletivos todos os dias, no Brasil. E os dados ainda são subnotificados: há mais de 450 mil vítimas que não constam nos registros oficiais. O cenário é sofrível: vivemos numa perversa cultura sexista e faltam políticas públicas eficazes. Cerca de 64% das vítimas de estupro coletivo são crianças e adolescentes e ainda há quem alegue não ver problema na hipersexualização das meninas nas propagandas e na indústria cultural.

Um folhetim que não se ocupa da sua responsabilidade com esse cenário não pode se autointitular um jornal. Pelo contrário, ao reforçar estereótipos de gênero, retroalimenta uma cadeia de argumentações misóginas, racistas e classistas, as quais podem desembocar num amplo feixe de práticas violentas. O AquiPE precisa se retratar publicamente e manter uma linha editorial coerente com o jornalismo, enquanto campo mediador de sentidos. Do contrário, continuará apenas alimentando ódio e manchando essa profissão tão nobre e relevante para a vida em sociedade.

Pela memória de Diana, pela vida das mulheres, pelo jornalismo, o AquiPE deve se retratar!

Recife, 5 de setembro de 2017.

Associação Cultural Anjo Azul (Acra)
ARPPE – Associação das Rádios Populares de Pernambuco
Centro das Mulheres do Cabo
Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)
Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá
Cendhec – Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
Ciranda Comunicação
Comissão de Ética do Sinjope
Dialógica Comunicação Estratégica
Fopecom – Fórum Pernambucano de Comunicação
Fórum de Mulheres de Pernambuco
Gajop – Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares
Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Movimento Nacional de Direitos Humanos
Observatório da Mulher
Observatório de Mídia da UFPE
Rede Mulher e Mídia
REMFA – Rede de Mulheres Feministas e Antiproibicionistas
SOS Corpo
Terral – Coletivo de Comunicação Popular
Rede de Mulheres Negras de Pernambuco
Marcha Mundial das Mulheres
SOF – Sempreviva Organização Feminista
REF – Rede Economia e Feminismo