A escalada de violações à liberdade de expressão e os ataques aos direitos humanos no Brasil são, novamente, tema de solicitação de audiência especial à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), a CIDH já realizou, em março deste ano, audiência sobre o crescente problema no país. Desta vez, entidades da sociedade civil brasileira chamam a atenção sobre como a restrição dos espaços de participação social nos órgãos de Estado e de acompanhamentos de políticas públicas vem impactando negativamente a democracia.

No relatório produzido pelas entidades (leia o documento na íntegra ao final da matéria), dentre elas o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, foram atualizados os casos de agressões contra comunicadores e as tentativas de censuras a veículos de comunicação. O documento também traz detalhes sobre os casos de perseguição e as privatizações na Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e relata a recriação do Ministério das Comunicações para instrumentalização política e a fim de atender às demandas do setor empresarial. Ainda são abordados os ataques às comunidades indígenas e às mulheres, aém das dificuldades no Acesso à Informação.

Segundo Olívia Bandeira, do Intervozes – Coletivo de Comunicação Social, a necessidade de solicitar uma nova audiência tem a ver com o fato de que as denúncias tratadas pela CIDH quatro meses atrás não apenas não foram resolvidas como vêm se agravando em meio à pandemia do coronavírus. “Tivemos uma audiência com a Comissão em março, no Haiti, onde apresentamos o quadro crescente de violações à liberdade de expressão no Brasil. O governo estava presente, mas apresentou respostas vagas a problemas como violência contra comunicadores, ataques à imprensa e o desmantelamento da comunicação pública. De lá para cá, no meio da pandemia, os problemas não só não foram resolvidos, como o quadro se agravou, gerando impactos no direito da população de acessar informações confiáveis sobre o novo coronavírus, que tem sido devastador no Brasil”, diz.

As comunidades tradicionais, a população negra, mulheres e moradores de periferias foram particularmente afetados, de acordo com Bandeira. “Assim, uma segunda audiência é muito importante para informarmos à comissão de que forma a exclusão digital, o esvaziamento dos espaços de participação, a falta de transparência nas informações sobre a Covid-19 e mesmo o uso dos canais oficiais de comunicação para disseminar informações pouco confiáveis afetam os direitos e a vida das populações”, defende.

O governo brasileiro incorporou o ataque à imprensa como método. Não são agressões isoladas, mas sistêmicas, criadas e repercutidas pelo próprio presidente, seus filhos, ministros e apoiadores mais próximos, explica Emmanuel Colombié, diretor regional do escritório para a América Latina da Repórteres sem Fronteiras (RSF). “Os ataques seguem uma estratégia definida e bem estruturada, visando semear na sociedade a desconfiança em relação ao jornalismo, enfraquecendo a democracia”, acrescenta. “O Estado brasileiro viola sistematicamente a sua obrigação de prevenir a violência contra jornalistas, obrigação claramente definida pela CIDH”.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) também é signatário da solicitação. Segundo Leonardo Pinho, vice-presidente do órgão, a CNDH identifica um conjunto de fatores que mostram o crescimento da violência e ataques a comunicadores e o aumento da desigualdade de acesso à informação, conforme explica.

Para ele, que também é coordenador da Comissão de Relações Internacionais, a situação da participação e controle social já estava sob ataque, com diversos decretos esvaziando e alterando, de forma arbitrária, a composição de conselhos. Sob a pandemia, este processo foi aprofundado: “O CNDH contribuiu a partir da Comissão de Participação Social, que tem a presença dos diversos conselhos de direitos, denunciando o aprofundamento do esvaziamento da participação e controle social no contexto da pandemia”.

O papel das denúncias internacionais sobre direitos humanos

De acordo com Denise Dora, diretora-executiva da Artigo 19 (ONG que atua desde 1987 na defesa da liberdade de expressão), até mais importante do que os efeitos que podem produzir, é fundamental entender o propósito de levar denúncias como esta às instâncias internacionais. “O historiador inglês Eric Hobsbawm diz que o maior número de mortes ocorrida na população de diversos países foi devido à violação de direitos por parte de seus próprios governantes. Foi exatamente contra esta barbárie, perpetrada pelos poderes locais contra a sua população, que estabeleceu-se o direito internacional dos direitos humanos, garantindo a possibilidade de um cidadão ou uma cidadã comuns reclamarem de seu governo frente a uma instância internacional de defesa de direitos”.

Para Dora, a condução do Brasil pelo governo de Jair Bolsonaro, antes e, especialmente, durante a pandemia, constitui um poderoso exemplo de caso a ser levado para tais instâncias: “O governo brasileiro é responsável por um aumento genocida do número de mortes na comunidade indígena devido a um precário serviço de saúde, a ausência de programas de medicamentos e equipamentos para atender populações tradicionais e que vivem nas periferias das grandes cidades”, opina. “É um governo que não distribui equipamentos de proteção de saúde para profissionais do setor de forma suficiente e que não fez programa de testagem em massa para verificar as condições epidemiológicas da população”.

Mas não para por aí. Dora ressalta que, apesar de toda esta ausência de políticas, o governo de Bolsonaro ainda produz desinformação, nega o acesso à informação ao desidratar a Lei do Acesso à Informação e persegue jornalistas – em especial, mulheres. “O que o governo tem feito é produzir uma ausência absoluta de dados confiáveis para que se possa pensar em políticas de proteção à liberdade de expressão, à liberdade de opinião e de informação. Por isso que esta coalizão de organizações que apresenta este pedido à CIDH, a fim de fazer o melhor uso possível deste sistema internacional de cooperação”, justifica. 

“Estamos cientes de que, além da mobilização da sociedade, além de recursos judiciais e além do debate no parlamento, que as organizações já vêm fazendo, é fundamental levar para as esferas de cooperação internacional o que o governo brasileiro está fazendo com a própria população”, argumenta a diretora-executiva da Artigo 19. “São graves violações de direitos humanos e, para o mundo enxergar desta forma, temos o dever de produzir essas evidências, levando este debate aos níveis regional e internacional sempre que possível, de forma profissional e atenta, na defesa da liberdade de expressão no país e no mundo”.

Leia a íntegra da solicitação, assinada pelas seguintes entidades: Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Anistia Internacional, Artigo 19, Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, Coalizão Direitos na Rede, Coding Rights, Conectas Direitos Humanos, Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Contee (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino), Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Instituto Vladimir Herzog (IVH), Repórteres sem Fronteiras (RSF) e Terra de Direitos.

Foto da capa: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Matéria publicada originalmente no site do FNDC.