Artigo de João Brant critica projeto que modifica o uso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para promover transferência de renda dos consumidores para as empresas

Está em vias de aprovação na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL 1481/2007) que modifica a lei do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o Fust (Lei 9998/2000). Sob o véu de agenda positiva, esconde-se um texto desastroso, anacrônico, que descaracteriza o fundo, configura um desvio de finalidade e promove uma imensa transferência de renda dos consumidores para as empresas de telecomunicações.

Ele vem no bojo de duas falsas premissas: 1) a de que a lei do Fust é ruim por não permitir o uso do fundo para a expansão da banda larga; 2) a de que são necessárias políticas especiais do Fust para garantir a conectividade dos estabelecimentos de ensino. Os problemas em que se baseiam essas premissas são verdadeiros, as soluções é que são péssimas.

O Fust nasceu para financiar a universalização dos serviços prestados em regime público, que são aqueles que têm como objetivo serem universalizados – e assim deveria permanecer. Parece óbvio? Mas não é. A Lei Geral das Telecomunicações (9472/97) estabeleceu vários pontos relevantes para entendermos essa não-obviedade:

1) Ela dividiu os serviços de telecomunicações em serviços prestados em regime público e em regime privado. No primeiro caso, encaixam-se todos aqueles prestados “mediante concessão ou permissão, com atribuição a sua prestadora de obrigações de universalização e de continuidade”. ‘Regime público’, portanto, nada tem a ver com serviços de telecomunicações prestados pelo Estado: significa, na prática, apenas o reconhecimento daquele como um serviço público (como água, luz etc.), a ser prestado por empresas privadas ou públicas;

2) Cada modalidade de serviço pode ser prestada só no regime público, só no regime privado ou concomitantemente nos dois regimes.

3) O único serviço que a lei já define como regime público é o de telefonia fixa. É o que fazia sentido à época (1997). Mas o artigo 18 diz claramente que cabe ao Poder Executivo, por meio de decreto, “instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado”. Isto é, a qualquer momento qualquer outro serviço em regime público pode ser criado, basta um decreto da Presidência da República;

4) Mas o ponto mais importante é que a lei diz claramente: “não serão deixadas à exploração apenas em regime privado as modalidades de serviço de interesse coletivo que, sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres de universalização”.

Esse é o ponto chave. Se a banda larga é essencial e deve ser universalizada – e nós acreditamos fielmente nisso – então, segundo a lei, ela deve ser prestada em regime público. Com isso, não se precisaria fazer nenhuma modificação na lei do Fust para que ele pudesse ser usado para esse serviço. E para fazer da banda larga um serviço em regime público, bastaria um decreto.

Mas por que seria importante transformar a banda larga em regime público? i) porque é o reconhecimento de que ela é um serviço público essencial a ser universalizado, com metas para isso (inexistentes no regime privado); ii) porque ela passa a ter obrigação de continuidade; iii) porque ela viabiliza um controle efetivo das tarifas (no regime privado, as tarifas são livres); iv) porque ela cria bens reversíveis, ou seja, os bens essenciais à prestação do serviço são devolvidos à  União no final do contrato (analogamente: a empresa de luz não pode levar os fios e cabos com ela no final do contrato); v) porque o controle sobre as empresas e suas obrigações de qualidade perante os usuários passa a ser muito maior.

Não à toa, na I Conferência Nacional de Comunicação, a proposta de transformar a banda larga em serviço em regime público foi aprovada por consenso, com apoio do poder público e do conjunto da sociedade civil, inclusive do setor empresarial.

As armadilhas do projeto

O que o PL 1481 (esse que está em vias de ser aprovado) faz é ampliar a possibilidade de uso do Fust. O texto atual da lei estabelece, coerentemente, que o fundo tem como finalidade “proporcionar recursos destinados a cobrir a parcela de custo exclusivamente atribuível ao cumprimento das obrigações de universalização de serviços de telecomunicações, que não possa ser recuperada com a exploração eficiente do serviço”. O PL inclui outro objetivo: “financiar, de outras formas, iniciativas voltadas a ampliar o acesso da sociedade a serviços de telecomunicações prestados em regime público ou privado e suas utilidades, bem como programas, projetos e atividades governamentais que envolvam serviços de telecomunicações”.

Isto é, o fundo de universalização deixa de ser só de universalização. Ele passa a ser um fundo para financiar quaisquer iniciativas voltadas a ampliar o acesso, de serviços em regime público ou privado. Pode parecer positivo à primeira vista, mas na prática abre-se uma avenida para que recursos sejam usados para n finalidades e, mesmo assim, os serviços permaneçam não universalizados. Até porque o PL abre o uso do Fust para qualquer uso, ao retirar do caput do artigo que trata das finalidades a relação do seu uso com os planos gerais de metas de universalização.

Esse desvio de finalidade é um risco real. A ideia de universalização tem sido abandonada até por quem deveria defendê-la. O Programa Nacional de Banda Larga (PNBL), por exemplo, não trabalha em nenhum momento com a ideia de universalização, mas sim de massificação. O documento base do PNBL, ao lado de várias propostas interessantes, cita como exemplo positivo de massificação a telefonia celular, que é denunciada por entidades de defesa do consumidor como um desastre – a média de uso é dos pré-pagos (mais de 80% da base) é de R$ 5, com uma das tarifas mais caras do mundo. Esses dados mostram que o aparelho pode até estar universalizado, mas o serviço está longe de ser. Se, para o programa de banda larga do Governo Federal, o exemplo positivo é esse, então a ideia de universalização precisa mesmo ser resgatada.

A principal justificativa ‘positiva’ para o projeto de mudança na lei do Fust é que ele estabeleceria meta de universalização da banda larga nas escolas públicas até 2013. Mas é preciso dizer que, por conta de trocas de metas realizadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) com as empresas de telecomunicações em 2006, esse objetivo já foi garantido antes disso! O site do Ministério da Educação mostra como o processo está avançado, quase concluído. Além disso, a lei, em seu formato atual, já estabelece que pelo menos 18% dos recursos do Fust devem ser aplicados em estabelecimentos públicos de ensino. Então, mesmo se ainda faltar conexão para um conjunto de escolas, há grande quantidade de recursos para usar com essa finalidade. Na prática, uma finalidade inegavelmente relevante tem sido usada como vitrine para um projeto que tem objetivos bem menos nobres.

Para completar sua lista de problemas, o PL revoga o artigo da lei atual que determina que as empresas devolvam ao Fust a receita obtida em serviços prestados com recursos do fundo que for superior àquela estimada nos projetos.

O único ponto positivo do projeto é que ele corrige uma distorção da lei original, que ao dedicar pelo menos 30% dos recursos para a Amazônia e o Nordeste, estabeleceu seu uso pelas concessionárias de telefonia fixa (que era, e segue sendo, o único serviço prestado em regime público), o que se tornará um limitante no momento em que se estabelecer o regime público para a banda larga (se isso acontecer, é claro). Mas isso poderia ser feito de forma bem mais simples.

A quem interessa?

Mas, afinal, de quem é o interesse para a aprovação desse projeto? As principais interessadas são as empresas de telecomunicações. Elas, que já faturavam R$ 180 bilhões em 2009, querem morder os mais de 7 bilhões de reais já acumulados no Fust sem serem submetidas à metas de universalização ou ao regime público. Sem o regime público, elas usarão recursos do fundo para incrementar seu próprio patrimônio. Sem a reversibilidade dos bens, elas tornam-se proprietárias de toda a infraestrutura adquirida com dinheiro público, que em tese deveria garantir a universalização dos serviços.

De fato, o projeto prevê possibilidade de subsídios diretos às empresas de telecomunicações, depois de um processo público de seleção feito “a partir de editais elaborados com base na política de universalização e nas diretrizes do Ministério das Comunicações”. Se estamos falando de política de universalização, não deveríamos falar de regime público, como diz a Lei Geral de Telecomunicações? Assim deveria ser, mas a proposta de modificação da lei do Fust não se inibe em ser completamente contraditória com a LGT.

Outro possível interessado na proposta é o Governo Federal, que enxerga nos recursos do fundo uma maneira de financiar o Programa Nacional de Banda Larga. De fato, seria muito positivo que esses recursos fossem utilizados para a universalização da banda larga; mas não é isso que prevê o Programa, que se restringe à ideia de massificação. Se quiser de fato universalizar a banda larga, em vez de modificar a lei do Fust e aplicar os recursos tendo como modelo a telefonia celular, basta ao governo publicar um decreto estabelecendo a banda larga como um serviço a ser prestado em regime público. E aí o caminho estará aberto para os recursos do fundo serem usados para financiar o PNBL.

O último ponto a ser destacado, como ironia da história, é que parte da esquerda, ao apoiar este projeto, está defendendo uma visão mais liberal que a dos ideólogos da privatização tucana. A LGT, baseada em modelos do Banco Mundial, ainda preservava minimamente a ideia de serviço público, e estabelecia o Fust como um instrumento para garantir políticas de universalização do serviço. Naquele momento, a ideia parecia um retrocesso. À época, a Telebrás tinha uma política de subsídio cruzado, que fazia com que a receita das áreas e serviços mais lucrativos subvencionasse o serviço em áreas mais remotas e/ou menos lucrativas. Com a privatização, um fundo composto por várias receitas, principalmente pela cobrança de 1% sobre a receita operacional bruta das empresas, passou a cumprir esse papel.

Agora, um projeto de lei pode fazer com esse fundo seja usado para fazer uma das maiores transferências de renda já vistas, com empresas privadas constituindo patrimônio próprio com dinheiro público, sem obrigações de universalização e sem prestar um serviço público. Oxalá os deputados ainda tenham tempo de perceber o tamanho do erro que estão prestes a cometer.

* João Brant é membro da Coordenação Executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social