Sentença despachada no último dia 21 de janeiro é resultado de Ação Civil Pública da qual o Intervozes é Amicus Curiae

“Vocês não vão ter filhos. Vocês não reproduzem. Vocês não procriam e querem acabar com a minha família e a família dos brasileiros. Vocês são nojentos”. O trecho é de um dos discursos proferidos pelo então apresentador Sikêra Jr no programa policialesco Alerta Nacional, veiculado pela TV Ômega (Rede TV) no dia 25 de junho de 2021.

O apresentador é conhecido por ocupar as grades de emissoras de TV Brasil afora desrespeitando as leis e incitando o ódio e a violência contra grupos vulnerabilizados. No trecho citado, utilizando-se de uma concessão pública de TV, Sikêra prega o ódio à população LGBTQIAPN+ sugerindo, ainda, relação entre este grupo e a pedofilia e o uso de drogas. Em sentença proferida na última terça-feira, 21, a Justiça Federal condenou o apresentador e a emissora por danos morais coletivos, fixados em R$300 mil reais.

A Ação Civil Pública de autoria do Grupo pela Livre Expressão Sexual e da Defensoria Pública da União conta com o apoio técnico e jurídico do Intervozes e da Artigo 19, juntamente da Associação Brasileira de Imprensa na figura de Amicus Curiae.

A sentença versa sobre denúncia apresentada pelas organizações diante de dois episódios do policialesco Alerta Nacional em que o apresentador profere conteúdo de ódio baseado em gênero e orientação sexual. Num dos vídeos apresentados como prova da denúncia, o apresentador reage a uma campanha promocional da rede Burger King com conteúdo celebrativo da diversidade de gênero e orientação sexual. À época, na tentativa de polemizar e criar engajamento negativo em torno da pauta do orgulho LGBTQIAPN+, Sikêra terminou perdendo importantes patrocinadores após o Sleeping Giants Brasil puxar campanha de desmonetização e incitar patrocinadores a retirarem o apoio ao apresentador e a seu programa.

Na sentença, a juíza Ingrid Schroder faz um apanhado da jurisprudência para justificar que a prática reiterada do apresentador e dos programas policialescos como o Alerta Nacional fere os limites constitucionais e infralegais da liberdade de expressão e enumera decisões anteriores importantes no reconhecimento desse limite.

Cita que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQI, classificados como homotransfobia, podem ser enquadrados como injúria racial (na acepção político-social do termo), tratando-se de crime imprescritível. A magistrada relembra ainda que o STF julgou, em 2020, inconstitucionais leis estaduais e municipais que buscavam proibir abordagens de gênero e diversidade sexual em materiais didáticos e currículos escolares.

Segundo a sentença, o discurso do réu José Siqueira não apenas reforçou preconceitos, como também promoveu a discriminação, a estigmatização e a necessidade de exclusão de um grupo vulnerável, incentivando inclusive a violência a tal grupo, ao associá-lo a crimes e “ameaça” às famílias ditas “tradicionais”.

“Tal postura não se alinha ao mero exercício da liberdade de expressão, mas caracteriza um comportamento ilícito, incompatível com os valores constitucionais e internacionais de respeito à dignidade humana e combate à discriminação”, diz parte do documento.

A advogada Nathalya Oliveira Ananias, representante do Intervozes na Ação, disse que a decisão é especialmente importante num contexto de banalização do discurso de ódio contra grupos vulnerabilizados supostamente em nome da liberdade de expressão e pela responsabilização solidária da emissora, concessionária pública.

Segundo Iara Moura, coordenadora do Intervozes, o sequestro da simbologia das liberdades individuais tem servido a poderosos para submeter grupos vulnerabilizados a ideologias excludentes e de ódio. “É necessário a gente denunciar que Trump, Musk, Bolsonaro, programas policialescos e outros que se autoproclamam arautos da liberdade de expressão são, na verdade, defensores autoritários de interesses políticos e econômicos que lucram com o ódio, a exclusão e mesmo o aniquilamento de grupos vulnerabilizados como mulheres, pessoas negras, indígenas, população LGBTQIAPN+, imigrantes e porque não dizer palestinos”, defende.

A justiça no encalço de Sikêra
Segundo Mabel Dias, especialista no tema de direitos humanos e programas policialescos, o histórico de Sikêra é antigo e não se trata de um caso isolado. “Os programas lucram com esse tipo de discurso e apostam na falta de fiscalização e responsabilização por parte do Ministério das Comunicações e da Justiça”, analisa. Em texto publicado no blog do Intervozes na Carta Capital [https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/caso-sikera-jr-ate-quando-a-justica-ficara-de-olhos-vendados-para-as-violacoes-na-midia/], a pesquisadora relembra que, somente em 2021, o Ministério Público Federal na Paraíba e no Rio Grande do Sul ingressaram com Ações Civis Públicas contra o apresentador. As ações estão em curso.

Na Paraíba, o MPF/PB denunciou Sikêra por discurso de ódio, misoginia e machismo contra as mulheres. O fato ocorreu em 2018, quando ele era apresentador do programa Cidade em Ação, exibido pela TV Arapuan, na época afiliada à Rede TV!, e se referiu às mulheres que não pintam as unhas e não se depilam como “sebosas”. No mesmo processo, o apresentador também foi denunciado por falas humilhantes contra uma jovem negra que foi exposta pela TV, tendo sido violada a sua presunção de inocência, direito constitucional.

Em seguida, o apresentador tornou-se réu na Justiça Federal paraibana por crime de racismo ao proferir discurso discriminatório contra essa mesma jovem. No processo, o MPF pede a prisão de Sikêra e o pagamento de multa. Vale lembrar que racismo é um crime inafiançável e imprescritível no Brasil, no entanto, Sikêra segue apresentando um programa policial na TV A Crítica, com sede em Manaus, presente em 16 estados brasileiros e com cerca de 3 milhões de seguidores no YouTube.

A sentença mais recente ainda pode ser objeto de apelação da defesa em instância superior. Ainda assim, é considerada pelo Intervozes uma vitória importante e a sinalização da Justiça de que não vai aceitar violações de direitos humanos por meio do uso equivocado da ideia de liberdade de expressão.