Intervozes avalia importância histórica da Confecom e aponta desafios para que as resoluções sejam implementadas no país.

Desde a promulgação da Constituição Federal, as políticas públicas de comunicação no Brasil viveram alguns momentos cruciais. Em 1995, foi publicada a Lei do Cabo (Lei 8.977/95), em 1997 foi instituída a Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97), seguida da privatização do sistema Telebrás. Em 1998, é publicada a restritiva Lei de Radiodifusão Comunitária (Lei 9.612/98) e em 2002 é viabilizada a entrada de 30% do capital estrangeiro nas empresas de rádio e televicONFECONsão, por meio de uma Emenda Constitucional. Em 2006, é publicado o Decreto 5.820/06 que estabeleceu as regras para TV Digital e, em 2008, é instituída por lei a Empresa Brasil de Comunicação – EBC (Lei 11.652/08). Na grande maioria dos casos, a sociedade civil foi apenas coadjuvante do processo. Políticas de comunicação sempre foram compreendidas como assunto do governo e de quem tem interesse econômico direto, isto é, os empresários do setor. Não por acaso, o resultado da maioria dos casos foi a prevalência dos interesses privados em detrimento do interesse público – exceções serviram apenas para confirmar a regra.

Em 2009, aconteceu a I Conferência Nacional de Comunicação. Diferente dos outros momentos da história recente do país, ela inaugurou um debate amplo e verdadeiramente público sobre as políticas do setor. Pela primeira vez, o Estado brasileiro instituiu um mecanismo formal de consulta à toda sociedade sobre os rumos que deve tomar a comunicação. Pela primeira vez, deixou de ser prerrogativa de alguns especialistas do campo progressista e, principalmente, de lobistas do setor privado e seus representantes no poder público a possibilidade de apontar quais devem ser as ações governamentais e o novo marco regulatório de uma área estratégica para o desenvolvimento social e fundamental para a democracia brasileira.

As etapas preparatórias e oficiais da Conferência, realizada nas 27 unidades da federação, envolveram diretamente cerca de 30 mil pessoas dos mais diversos segmentos. Centrais sindicais, movimento de mulheres, movimento negro, redes de jovens, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, pesquisadores, movimento de lésbicas, gays, e transexuais, movimento estudantil e empresários debateram temas como o sistema público de comunicação, as concessões de rádio e TV, universalização da banda larga, o controle social, entre centenas de outros temas até então restritos aos espaços dos “entendidos” ou “diretamente interessados” no assunto. O lastro deixado pelo processo certamente inaugura um novo momento do movimento pela democratização da comunicação no país, que passa a contar, de forma bastante orgânica, com novos e importantes atores para a luta.

Defesa da democracia – Outro marco da Confecom foi ter apontado resoluções que modificam substancialmente o modelo de comunicação hoje adotado no país. As quase 700 propostas aprovadas (cerca de 600 delas por consenso ou com mais de 80% de votos favoráveis) revelam a qualidade dos debates feitos pelo conjunto dos setores e, principalmente, a necessidade urgente de se atualizar o marco regulatório tendo como princípios fundamentais o direito à comunicação, a participação social e o respeito e estímulo à diversidade. Foram apreciadas e aprovadas propostas sobre os mais diversos temas, entre as quais se destacam:

  • a afirmação da comunicação como direito humano, e o pleito para que esse direito seja incluído na Constituição Federal ;
  • a criação de um Conselho Nacional de Comunicação que possa ter caráter de formulação e monitoramento de políticas públicas ;
  • o combate à concentração no setor, com a determinação de limites à propriedade horizontal, vertical e cruzada ;
  • a garantia de espaço para produção regional e independente;
  • a regulamentação dos sistemas público, privado e estatal de comunicação, que são citados na Constituição Federal mas carecem de definição legal, com reserva de espaço no espectro para cada um destes ;
  • o fortalecimento do financiamento do sistema público de comunicação, inclusive por meio de cobrança de contribuição sobre o faturamento comercial das emissoras privadas ;
  • a descriminalizaçã o da radiodifusão comunitária e a abertura de mais espaço para esse tipo de serviço, hoje confinado a 1/40 avos do espectro ;
  • a definição de regras mais democráticas e transparentes para concessões e renovações de outorgas, visando à ampliação da pluralidade e diversidade de conteúdo ;
  • a definição do acesso à internet banda larga como direito fundamental e o estabelecimento desse serviço em regime público, que garantiria sua universalizaçã o, continuidade e controle de preços ;
  • a implementação de instrumentos para avaliar e combater violações de direitos humanos nas comunicações ;
  • o combate à discriminação de gênero, orientação sexual, etnia, raça, geração e de credo religioso nos meios de comunicação ;
  • a garantia da laicidade na exploração dos serviços de radiodifusão ;
  • a proibição de outorgas para políticos em exercício de mandato eletivo.

Garantias e privilégios para os empresários – Não foi fácil garantir que a Conferência acontecesse. Desde antes da publicação do decreto que anunciou a realização do evento, o setor empresarial impôs uma série de condições para sua participação, desconfigurando o processo de participação popular já estabelecido em mais de 100 conferências realizadas no país. Entre os principais problemas estão o estabelecimento de uma proporção desequilibrada na representação dos segmentos – os empresários abocanharam 40% das vagas de delegados; o estabelecimento da regra de quórum qualificado para a votação dos chamados “temas sensíveis”; e a proibição de votação das propostas nas etapas estaduais, o que retirou parte do peso político dos processos estaduais e deixou as verdadeiras disputas para a etapa nacional. E mesmo com tantas “garantias”, seis das oito entidades empresariais abandonaram a Comissão Organizadora Nacional. Essas mesmas entidades, por meio dos veículos de comunicação que elas representam, acusaram a Confecom de ser um espaço autoritário e antidemocrático.

As imposições dos empresários também impactaram o conjunto dos movimentos sociais, a ponto de constranger organizações a tomarem determinadas posições sob a suposta ameaça da Confecom não acontecer ou não contar com a participação empresarial. Diferentes entendimentos sobre a natureza da Conferência refletiram-se em visões distintas sobre como conduzir a interlocução com o governo e os empresários. Prevaleceu a idéia da “Conferência possível”, realizada dentro dos limites dados pela pressão empresarial e governamental, o que significou, por vezes, ignorar uma parte importante dos setores mobilizados historicamente pela realização da Conferência. Apesar disso, a Confecom colocou a comunicação em debate público e aprovou resoluções importes para a construção de novas bases para a comunicação no país.

Hora de avançar numa agenda comum – Transformar as propostas em proposições legislativas e políticas públicas não será fácil. É tarefa urgente dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil criar uma agenda comum para a implementação dos seus resultados, cobrando dos Poderes Executivo e Legislativo a responsabilidade de acolher as recomendações dos delegados da Confecom, pactuadas entre o setor empresarial o conjunto dos movimentos sociais e o poder público.

Também é fundamental organizar as prioridades e estebelecer um diálogo incisivo com os candidatos ao Legislativo e Executivo, tanto no âmbito federal quanto estadual. Os Conselhos Nacional e Estaduais de Comunicação são demandas que podem ser implementadas ainda em 2010, como é o caso dos Conselhos Estaduais do Piauí, Paraná e Bahia, consequência direta das etapas estaduais, que se encontram em estágio avançado de efetivação.
Outro desafio é consolidar o processo de mobilização da sociedade civil em saldo organizativo para o movimento de comunicação em todo o país. A hora é de retomar as articulações nacional e estaduais para construir uma agenda comum de prioridades, ações e mobilizações.

As organizações da sociedade civil tiveram que dispor muita energia em 2009 para que a Conferência fosse realizada em todas as suas etapas. Se quiserem ver a implementação das resoluções aprovadas, terão que jogar no mínimo a mesma energia nestas movimentações pós-Conferência. Conquistas reais só ocorrerão com um processo de luta permanente. E este é só o começo.