Neste dia Internacional de Luta das Mulheres, o setorial de mulheres do Intervozes lança publicamente documento de combate ao assédio sexual. A carta de princípios defende a importância e a urgência da luta contra esse e outros tipos de violência decorrentes do machismo e patriarcado. O documento orienta a militância a adotar práticas que visem a garantia da segurança, da autonomia das mulheres e aponta a criação de espaços para o recebimento de denúncias e de acolhimento às vítimas quebrando o silêncio e a banalização deste tipo de violência. A carta foi construída coletivamente pelo setorial de mulheres da entidade a partir de debates e formações internas realizadas com o conjunto do coletivo e protagonizados pelas militantes.

“Ressaltamos a importância da capacidade de nos transformarmos coletivamente com base na crítica e no diálogo e por isso ansiamos que nosso Coletivo seja cada vez mais sensível e respeitoso com os direitos de nós mulheres consideradas em nossa diversidade identitária, de origem étnica e orientação sexual,  mais rigoroso no combate à cultura do assédio e mais acolhedor para as militantes. É imperativo que, neste espaço coletivo de luta e utopia, nós mulheres nos sintamos à vontade, seguras e confiantes de que o assédio não será tolerado. Da mesma forma, o Intervozes não irá tolerar práticas de assédio sexual praticadas por seus militantes, especialmente em espaços onde estejam representando o Coletivo”, diz um trecho do documento.

Leia abaixo a íntegra do documento:

Levante sua voz contra o assédio e a violência sexista

Vivemos numa sociedade estruturalmente machista, patriarcal, LGBTIfóbica e racista, o que impacta diretamente as mulheres em diferentes aspectos. No Brasil, segundo dados do Atlas da Violência de 2016, foram registrados 22.918 casos de estupro pelo Sistema Único de Saúde (SUS) naquele ano e 49.497 registrados pelas polícias, segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Especialistas acreditam que nenhum dos números representa a quantidade de casos que de fato ocorrem e apontam para uma estimativa de 90% de subnotificação.

O silêncio das vítimas sintetiza muitas das características desse tipo de violência: costumam ser cometidas contra pessoas vulneráveis (50,9% foram cometidos contra crianças de até 13 anos) e por pessoas da confiança da vítima (entre as adultas, 46% foram agredidas por pessoas conhecidas). A fragilidade do sistema de apoio e proteção às vítimas, a desacreditação na sua palavra, a dificuldade em produzir provas e a revitimização, que significa reviver a situação violenta ao denunciá-la, são amplamente conhecidas como dificuldades na denúncia e no tratamento dos casos.

Sabemos que o estupro é apenas um dos tipos de violência sexual e não está apartado do conjunto de ideias e valores que circulam na sociedade. Por isso se diz que vivemos uma “cultura do estupro”, “uma consequência da naturalização de atos e comportamentos machistas, sexistas e misóginos, que estimulam agressões sexuais e outras formas de violência contra as mulheres”, segundo a ONU Mulheres pela Igualdade de Gênero. “A cultura do estupro é violenta e tem consequências sérias. Ela fere os direitos humanos, em especial os direitos humanos das mulheres”, completa a ONU.

Defendemos, mulheres e homens do Intervozes, os direitos humanos, a comunicação como direito e o fim da cultura do estupro, reforçada pelo sistema concentrado de mídia que tanto combatemos. Sabemos, porém, que isso não nos descola da cultura do estupro e das relações desiguais entre homens e mulheres, também reproduzidas dentro do Coletivo.

Ressaltamos a importância da capacidade de nos transformarmos coletivamente com base na crítica e no diálogo e por isso ansiamos que o Intervozes seja cada vez mais sensível e respeitoso com os direitos de nós mulheres consideradas em nossa diversidade identitária, de origem étnica e orientação sexual,  mais rigoroso no combate à cultura do assédio e mais acolhedor para as militantes. É imperativo que, neste espaço coletivo de luta e utopia, nós mulheres nos sintamos à vontade, seguras e confiantes de que o assédio não será tolerado. Da mesma forma, o Intervozes não irá tolerar práticas de assédio sexual praticadas por seus militantes, especialmente em espaços onde estejam representando o Coletivo.

De acordo com a Lei nº 10.224, de 2001, é crime “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. A pena de detenção prevista é de um ou dois anos. Algumas interpretações da lei, contudo, entendem que o mero constrangimento, mesmo que não alcance seus objetivos, constitui crime de assédio sexual. O entendimento do que é assédio varia de acordo com o momento histórico. Nas últimas décadas, a reivindicação dos direitos das mulheres tem avançado ao ponto de comportamentos naturalizados até pouco tempo sejam hoje considerados assédio.

De 15 anos para cá, quando formamos o Coletivo como um grupo pequeno muito regido pelo afeto, foram muitas as mudanças sociais que nos levam a um entendimento de assédio diferente do que tínhamos. A partir também do nosso envolvimento com movimentos, formações e campanhas feministas, nossa preocupação com o combate ao assédio sexual torna-se central para o livre exercício da militância pelas mulheres.

Houve um veto ao texto da Lei nº 10.224 que trata de uma situação comum entre nossa militância. Esse veto restringiu os casos de assédio sexual às relações laborais tradicionais. Restringiu também as possibilidades de aplicação no ambiente doméstico, em relações de coabitação e/ou hospitalidade. Ou seja, existe toda uma gama de casos que não estão incluídos na lei. Isso significa que, por exemplo, se uma mulher sofre uma situação de assédio no Intervozes ou cometida por um militante do Intervozes em outros espaços, ela enfrentará problemas (além dos já sabidos) para encontrar uma solução jurídica, caso seja o desejo dela. Por outro lado, isso significa que devemos ter ainda mais responsabilidade com nossos procedimentos internos. Não é razoável nos restringirmos pelo veto jurídico do tema.

As resistências a mudanças jurídicas, uma herança colonial e patriarcal, argumentada por senhores de escravos, repete-se em casos relativos ao assédio sexual, quando por exemplo há reação à punição de chefes. Se minimizarmos situações no Coletivo, estaremos coadunando de alguma forma com essa noção de direito adquirido, seja ao acreditarmos que a pessoa “não sabia o que estava fazendo” ou ao manteremos privilégios e status dentro da organização, muitas vezes conquistados também na base de uma série de imposições fruto do próprio machismo e patriarcado instaurados. Ou seja, a posição ocupada pelas pessoas dentro dos coletivos não está desarticulada de seus privilégios (e abusos, em alguns casos). O fato de não haver “superior hierárquico” no Coletivo, como diz a lei, não anula as relações de poder e condições de status. Entre outros fatores, essa situação contribui para o medo de caracterizar atitudes de companheiros como assédio.

Frente a essas considerações, lembramos algumas das possíveis consequências do assédio sexual nos espaços de militância:

  • Alienação da mulher dos espaços políticos;
  • Afastamento de mulheres militantes (não apenas quem sofreu, mas quem não se sente confortável devido aos casos de assédio);
  • Dificuldade de aproximar novas companheiras;
  • Insegurança das mulheres para atuar politicamente.
  • Reforço da estrutura de poder, com manutenção dos privilégios dos integrantes homens, sobretudo os brancos, héteros e cisgêneros.

Assim, defendemos que:

  • O consentimento livre,  consciente e expresso é a necessária garantia de que não está sendo praticado assédio; o silêncio, a ausência do “não” ou de resistência não constituem consentimento;
  • As mulheres são livres para exercer sua sexualidade, não cabendo atitudes insistentes por parte dos companheiros;
  • O assédio precisa ser compreendido no seu escopo político, uma vez que a imposição da condição de poder masculina por meio desse instrumento é também forma de intimidação / coação e muitas vezes funciona até mesmo como contenção da atividade política de mulheres
  • O combate ao assédio não deve ser visto como algo desvinculado da luta feminista e anti-patriarcal, uma vez que não se trata de ação isolada.
  • Não podemos ter mais receio do constrangimento causado pela denúncia do que do constrangimento sentido por nossas companheiras em situação de assediadas;
  • O possível desligamento ou afastamento de companheiros militantes em função de denúncias ou de sanções não deve nos levar a esquecer quantas companheiras podemos ter perdido ou podemos vir a perder ao não garantir um ambiente seguro e livre de assédio e violências sexistas;
  • Entendendo as dificuldades impostas a todas as mulheres para tornar públicos casos de assédio sexual, devemos criar espaços de especial cuidado, apoio e acolhimento às vítimas. Elas devem ser nossa prioridade;

Nosso objetivo é construir coletivamente um ambiente seguro, livre e saudável para nossa atuação política, garantindo que nossas companheiras sintam-se à vontade, não intimidadas, respeitadas e confiantes. Para isso, reafirmamos a necessidade de pactuarmos coletivamente este protocolo de conduta com vistas à criação de um ambiente seguro e livre de assédio para as mulheres do Intervozes.

Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

8 de março de 2019

 

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