Por Florence Poznanski e Félix Blanc*

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Durante o 12° encontro do Fórum da Governança da Internet (IGF) que aconteceu esse ano na sede da Organização das Nações Unidas em Genebra entre os dias 18 e 21 de dezembro, a ONG Internet sem Fronteiras organizou um painel sobre o tema da governança dos cabos submarinos. A atividade aconteceu na terça feira 19 de dezembro, co-organizada com o coletivo Intervozes e o pesquisador Diego Vicentin, da Universidade de Campinas (UNICAMP). Ela teve o objetivo de sintetizar uma série de ações iniciadas pela ONG a partir de 2016 sobre o tema, desde a cryptorave de São Paulo em abril 2016, passando pelo painel organizado durante o RightsCon de Bruxelas em março de 2017 até o trabalho de pesquisa coordenado por Félix Blanc durante o segundo semestre de 2017 com o apoio do centro de Tecnologia e Sociedade (CTS/Fundação Getúlio Vargas).

Cerca de quarenta pessoas participaram do debate norteado pelas intervenções de Roxana Radu (Diplo Foundation, Suiça), Peter Micek (Access Now, USA), Veridiana Alimonti (Intervozes, Brasil), Félix Blanc (Internet Sans Frontières, France) e moderadas por Florence Poznanski (Internet Sem Fronteiras – Brasil). Os painelistas pautaram principalmente a ausência de transparência e a extrema concentração do tráfego de dados que passa pelos cabos, além de um contexto de forte vulnerabilidade dessas infraestruturas e de fraca regulação internacional.

Concentração e vulnerabilidade internacional

Roxana Radu, responsável dos programas na “Geneva Internet Platform”, lembrou que Internet não é tão descentralizada quanto se costuma dizer e que os cabos submarinos, por onde trafegam 97% das comunicações, são propriedade de empresas privadas sem instância de governança clara e sequer legislação internacional detalhada. Ela observou também que apesar de serem infraestruturas antigas (oriundas da rede de telégrafos no século XIX) o interesse das empresas por essas infraestruturas continua importante já que hoje, empresas da camada de produção de conteúdos como Google ou Facebook investem nos seus próprios cabos para transportar seus dados de maneira autônoma.

Portanto, Radu lembrou que os cabos ainda são infraestruturas frágeis que sofrem  ingerências físicas (cerca de 300 interferências por ano) intencionais (vigilância, ataques militares, etc.) ou acidentais (barcos de pesca, tubarões, etc.) e que não há uma legislação internacional completa para garantir maior proteção.

Após lembrar os principais tratados internacionais que regem a proteção dessa rede internacional, ela observou que sanções estão previstas em caso de ataque, mas que os cabos não podem ser protegidos enquanto alvos não-militares em caso de conflito – uma vulnerabilidade que custa caro e pode provocar impactos colossais para os territórios que dependem dessas infraestruturas. Radu citou o exemplo da Somália, onde o cabo foi cortado em julho de 2017 e desconectou a região durante três semanas causando prejuízo avaliado em torno de 10 milhões de dólares por dia.

Vigilância e defesa dos direitos humanos

Peter Micek, consultor político e jurídico para a ONG Access Now, abordou o problema da vulnerabilidade dos cabos e seu impacto para os direitos humanos, especialmente para liberdade de expressão. “Essas infraestruturas são essenciais para os direitos humanos. Elas não servem só aos banqueiros para acelerar a especulação internacional, mas para a comunicação e a livre expressão dos cidadãos” afirmou.

Infelizmente os governos e operadores privados sustentam certa opacidade e sigilo sobre os acordos e termos de operacionalização ligados a esses cabos. As revelações de Edward Snowden em 2014 (o programa Tempora, por exemplo, monitorado pelos “5 olhos”) contribuíram em parte para revelar publicamente a vigilância em massa não autorizada e operada sem nenhum debate público em torno dos dados que transitam por esses cabos.

Mas Micek lamentou que o impacto causado pelo escândalo não conseguiu sensibilizar mais sobre a governança dos cabos submarinos, o que justifica a importância do debate realizado, único momento a tratar do tema durante o IGF. Construir novos cabos que não passam pelos Estados Unidos, como está fazendo o Brasil, por exemplo, não é uma estratégia suficiente para evitar essa vigilância. “Os governos devem ter mais imaginação para fortalecer a governança, estimular a economia digital e alcançar as metas de sustentabilidade do milénio para 2020” frisou.

Nesse sentido Access Now lançou várias campanhas e ferramentas como #KeepItOn, que luta contra todas formas de censura feita ao acesso à Internet no mundo, e uma carta de princípios sobre respeito aos direitos humanos para conectividade e o desenvolvimento.

América Latina e ampliação da conectividade

Focando o debate sobre o continente latino-americano, Veidiana Alimonti, advogada e membro do conselho diretor do coletivo Intervozes, comentou, como Radu, o mapa da distribuição dos cabos no mundo, e a extrema concentração do poder que se desdobra nisso. “Não podemos conceber hoje que a América Latina não possa se comunicar com a Ásia sem passar pelos Estados-Unidos ou que esses últimos precisem passar pela Europa para falar com a África”, denunciou.

Essa concentração traz uma desigualdade de preços que afeta todos os países do Sul. Ela lembrou que os preços de conexão são 10 vezes mais altos na América Latina do que na Europa e que o preço de uma conexão entre Buenos Aires e São Paulo é duas vezes maior de que um trajeto bem mais longo entre Miami e São Paulo, onde a rede de cabos é mais densa.

Os preços elevados são ligados à falta de diversidade dos operadores e a centralização das rotas utilizadas por esses cabos. Conexões mais diretas podem melhorar a qualidade das comunicações e reduzir o tempo de latência. Segundo Alimonti, a chegada de 8 novos cabos no Brasil nos próximos anos (sendo que somente 3 passarão pelos Estados Unidos) poderá tornar mais rápida a conexão Internet no Brasil. Pesquisas mostram que o único cabo previsto entre Brasil e África poderia contribuir para acelerar até 5 vezes a conexão entre os dois continentes.

Porém, Alimonti lembrou que a conectividade deve ser vista na sua globalidade, do cabo até a última milha de rede que conecta o usuário. O desafio da universalização do acesso não pode ficar dependente das exigências da competitividade do mercado. As iniciativas privadas devem ser combinadas com políticas públicas de regulação acompanhadas por investimentos públicos, para incentivar iniciativas locais juntas com o setor acadêmico e fortalecer dessa maneira a dimensão multissetorial que garante uma boa governança. Ela citou como exemplo a iniciativa do Comitê Gestor da Internet (CGI) que opera há vários anos pontos de troca de tráfego reunindo atores comerciais e acadêmicos em 33 cidades, regida por acordos de troca de conexões horizontais (“peering”) a baixo custo.

EllaLink, um cabo com uma governança inovadora                                                                       

Último orador do painel, Félix Blanc, pesquisador convidado no Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas e membro da ONG Internet sem fronteiras apresentou a pesquisa que acabou de finalizar sobre o cabo EllaLink, que conectará o Portugal com o Brasil a partir de 2019 com um forte investimento da comissão Europeia. A particularidade desse cabo com 72 Tbps de capacidade é de juntar no consórcio operadores de telecomunicações, tradicionais investidores comerciais e atores sem fins lucrativos, que são as duas redes acadêmicas europeias e latino-americanas (GEANT e RedClara), que usufruirão de um direito de uso irrevogável durante toda a duração da vida do cabo para facilitar a comunicação entre os atores acadêmicos e sem fins lucrativos. Um projeto iniciado desde a conferência de Toledo em 2002 na perspectiva da extensão do observatório astronômico chileno Cerri Paranal, onde serão produzidos em breve 70% dos dados astronômicos mundiais.

Esse novo modelo associa à governança e operação do cabo atores sem fins não lucrativos e abre a possiblidade de uma rede dual que poderia ser uma maneira de preservar parte do espectro para pesquisa e as organizações sem fins lucrativos. O modelo ainda está em estágio embrionário e deveria ser debatido ampla e publicamente na Europa e na América Latina para que se torne realidade, ainda que garantindo a regulação do interesse público na rede comercial.

Importantes pistas de reflexão e de ação foram abertas por esse debate durante o IGF. Para a Internet Sem Fronteiras e seus parceiros, dois desafios principais apresentam-se: construir uma agenda de mobilizações em torno a operacionalização do cabo EllaLink no Brasil para 2018 e 2019 e aprofundar a pesquisa ao nível mundial sobre os cabos submarinos e a defesa dos direitos humanos.

O relatorio feito pela DiploFoundation sobre o painel pode ser consultado aqui.

* Florence Poznanski é cientista politica e ativista, diretora da sede brasileira da ONG francesa Internet Sem Fronteiras

Félix Blanc é doutor em filosofia, membro da ONG ’Internet Sans Frontières e pesquisador convidado no CTS/FGV (Centro Tecnologia e Sociedade/ Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro)

Revisão Veridiana Alimonti