Em audiência pública, organizações sociais criticaram governo por falta de fiscalização, enquanto empresários pediram desburocratização; ministério anunciou modernização do trâmite de outorgas.

Em outubro de 2007, venceram as concessões de importantes emissoras brasileiras de TV, entre as quais as cinco próprias das Organizações Globo e as “cabeças-de-rede” da Record e da Bandeirantes. O encerramento do prazo serviu de gancho para que várias entidades questionassem o sistema de outorgas no Brasil por meio da Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV. A iniciativa reuniu movimentos sociais e organizações da área da comunicação em torno desta bandeira, mobilização que conseguiu dar aos processos um novo caráter, intervindo especialmente para evitar que as renovações fossem feitas de maneira automática e sem participação da sociedade, como historicamente tem ocorrido.

Como resultado da ação de entidades ligadas à campanha, foi realizada hoje (27) audiência pública na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados para debater a renovação das concessões vencidas em 2007 e o sistema brasileiro de outorgas de rádio e TV. Entre denúncias, questionamentos e propostas, prevaleceram as críticas ao Executivo, embora por motivos diferentes. Na ótica das entidades da sociedade civil e de parlamentares, o governo federal não fiscaliza os concessionários, permitindo que estes cometam abusos em relação à legislação e aos preceitos constitucionais.

Em um documento assinado por vários movimentos sociais e entidades [veja aqui ], as organizações questionaram por que o ministério não fiscaliza as exigências legais mínimas existentes hoje, como as restrições referentes à publicidade, o índice mínimo para programas jornalísticos e educativos e os limites de propriedade constantes no marco normativo do setor. “É inadmissível que o Ministério das Comunicações não fiscalize exigências básicas”, contestou Jonas Valente, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

José Soter, da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), reforçou a crítica, evidenciando o tratamento diferenciado dispensado pelos órgãos reguladores às mídias comercial e comunitária. “Há uma fiscalização muito rígida em relação ao conteúdo das comunitárias e uma permissividade muito grande em relação as comerciais”, disparou o ativista. “A área de fiscalização ainda está muito débil”, reforçou o deputado Jorge Bittar (PT-RJ).

Empresários e ministério culpam burocracia

Os concessionários também criticaram o Executivo Federal, mas pelo excesso de burocracia. “As empresas por força de lei são obrigadas a entregar uma série de documentos e atender as exigências legais. Isso nem sempre é fácil, mas temos um prazo para cumprir”, disse Deniz Munhoz, da Rede TV e representante da Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra). “Desde os primeiros debates, citamos a demora nos processos de renovação e outorgas. Há necessidade de uma norma que se estabeleça um prazo para as autoridades responsáveis pela renovação”, sugeriu Marcelo Cordeiro, da Rede Record.

O Consultor Jurídico do Ministério das Comunicações, Marcelo Bechara, concordou com os empresários. “O processo de renovação é extremamente burocrático. Ninguém tem dúvidas com relação a isso. Já passou da hora de termos uma uniformização dos procedimentos”, afirmou. Para o representante do Minicom, a razão é a falta de estrutura do órgão. “O fechamento de delegacias no governo passado ainda pesa sobre os servidores. Todos os processos se concentram em Brasília”, apontou.

“Falta vontade política”

José Soter contestou a justificativa de Bechara, indicando que a alegação da falta de estrutura seria uma desculpa para a fiscalização deficiente. “Por trás das causas alegadas, de falta de infra-estrutura, está escondida uma falta de vontade política para o Estado não exercer sua função”, disse. Jonas Valente, do Intervozes, questionou, sem resposta, o porquê de um governo que tem realizado tantos concursos e criado novas estruturas não ter incrementado a estrutura do Minicom e sugeriu à CCTCI que faça uma audiência pública com o Ministério do Planejamento para discutir providências emergenciais referentes aos recursos físicos e humanos da pasta das Comunicações.

Marcelo Bechara anunciou que o ministério contratou a consultoria da Fundação Getúlio Vargas para modernizar procedimentos internos e, quiçá, apresentar propostas de reforma na legislação da área. Jonas Valente destacou que as propostas de mudanças, para irem ao encontro do espírito da audiência, precisariam ser submetidas a uma consulta pública, de modo a incorporar sugestões da população para que o sistema de outorgas de radiodifusão responda melhor aos seus anseios.

O documento de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais também questionou o ministério pelo não encaminhamento de renovações até o encerramento do prazo da nova outorga, fato que teria resultado no arquivamento de 184 processos de rádios e TVs. Valente e Sóter criticaram fortemente a falta de transparência do Executivo nos processos de outorga, citando a falta de resposta do Ministério das Comunicações a um pedido de informações do Intervozes, da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da União Nacional dos Estudantes (UNE) sobre as concessões vencidas em 2007. As entidades anunciaram que entrariam com um Mandado de Segurança para obter as informações, mas Marcelo Bechara afirmou que o órgão disponibilizará as informações.

Obrigações e compromissos das emissoras

Para além da fiscalização, as entidades participantes da audiência propuseram novas obrigações para constar nos termos aditivos ao contrato de concessão, que deve ser assinado ao final do processo de renovação [veja aqui ]. Entre as propostas estão a “proibição de arrendamento ou subconcessão total ou parcial da outorga por parte do concessionário”; o cumprimento dos incisos II e III do artigo 221 da Constituição Federal, que prevêem um percentual de produção regional e estímulo à produção independente, em termos determinados pela Câmara dos Deputados; o estabelecimento de ouvidorias e Conselhos de Programação; a classificação da programação quanto ao gênero e a garantia de acessibilidade para pessoas com deficiência.

A deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que propôs a audiência, manifestou-se favorável ao acréscimo de cláusulas no contrato das concessionárias. “O Decreto 52.795/63 [Regulamento dos Serviços de Radiodifusão] já estabelece a necessidade de se aditar a renovação das concessões. Após 10 anos de rádio e 15 de TV coloca-se a necessidade de se rever os critérios e as exigências. O Decreto 88.066/83 traz as cláusulas atuais, que devem ser alteradas, adequando as que definem os critérios para a renovação”, defendeu Erundina.

Segundo Jonas Valente, tais pontos contribuiriam para que as emissoras cumprissem sua função de serviço público. O representante do Intervozes também apresentou um Termo de Compromisso Público elaborado pelas organizações que objetiva estabelecer acordos com as emissoras em relação a princípios de atendimento do interesse público [veja aqui ].

Abert diz que emissoras não precisam atender “todo o público”

O consultor jurídico da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Alexandre Jobim, rebateu, diferenciando as responsabilidades dos três sistemas previstos na Constituição Brasileira. “Os concessionários comerciais não precisam atender todo o público, uma vez que pertencem ao sistema privado”, argumentou. “Embora haja três sistemas, a radiodifusão é serviço público e, portanto, precisa haver mecanismos institucionais que permitam ao público acompanhar a programação e opinar no momento da renovação”, respondeu Jonas Valente.

Além das propostas das entidades, foram apresentadas inúmeras denúncias de violações dos direitos humanos pelas emissoras, casos de desrespeito flagrante às exigências legais atuais e de negligência por parte do Ministério das Comunicações [veja aqui ]. Jobim, da Abert, alegou que não poderia respondê-las, por tê-las recebido naquele momento, mas afirmou que não compactuava com todos os desvios e distorções cometidos por emissoras de rádio e TV.

Alteração do marco legal

Os participantes não se ativeram apenas à análise do Executivo e propuseram a mudança do marco normativo da radiodifusão brasileira [veja aqui as propostas apresentadas pelas entidades ]. “A lei atual, de 1962 é de um anacronismo inútil. É um cadáver insepulcro e não se sabe exatamente o que fazer com ela. É ela que regula”, enfatizou veementemente o professor da Universidade de Brasília Murilo Ramos.

Em resposta, a deputada Luiza Erundina e os deputados Walter Pinheiro (PT-BA) e Jorge Bittar (PT-RJ) defenderam a realização da Conferência Nacional de Comunicação. “A Conferência Nacional de Comunicação pode dar ao governo o respaldo popular para promover a iniciativa legal que pode criar esse novo aspecto legislativo que permita botar o dedo na ferida”, defendeu Pinheiro, presidente da CCTCI. “Este debate deve apontar algo que precisa culminar com uma Conferência Nacional, que aponte para um marco legal que possibilite a democratização dos meios e o controle social para que o patrimônio público seja apropriado pelo povo”, acrescentou Luiza Erundina.

Fonte: Observatório do Direito à Comunicação, em 27/11/2008.

Veja também:
Documentos entregues pelas organizações e movimentos sociais à CCTCI